Aline Bei: Não tem nome

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‘Alegoria da Alma’ (1951), de Salvador Dalì

lembra quando a gente se encontrou naquele café?

você estava com um namorado

ou amigo, não sei.

– era amigo.

-naquele dia eu estava me sentindo tão mal, em crise, não sabia se eu era mesmo um escritor, na verdade

eu não sabia quem eu era. e você foi lá

na minha mesa

me deu oi depois de tantos anos como se a gente tivesse se visto ontem

e me chamou de escritor, você se lembra?

-sim.

-oi escritor, você disse. e por você ter me chamado assim

justamente naquele momento

me fez ganhar uma força. você comentou também da residência na casa da Hilda Hilst, que aquilo era a minha cara, que eu tinha que me inscrever. eu fui atrás no mesmo dia, conto essa história pra todo mundo. foi você quem me fez ir pra casa sol.

sorri, essa revelação me

abraçou. eu estava no ateliê dele há meia hora

num clima um pouco tenso que às vezes acontece quando vemos alguém que gostamos mas

não temos intimidade e também não temos certeza

se rola uma tensão sexual ali

se é amizade ou

se é uma mistura de tudo e não há problema algum nisso,

com ele me dizendo essas coisas foi ficando claro que não havia problema.

eu não tenho amigos. – contei pra ele. – tenho só dois que óbvio

são maravilhosos, mas

não enchem uma sala.

não sei como será o lançamento do meu livro, acho que vazio demais pra ser um sucesso. aliás, o que é sucesso?

uma sala cheia de gente

ou uma sala com gente que me transborda por dentro?

melhor seria uma sala cheia de gente transbordante, ainda bem que vai ter um outro autor lançando comigo

porque senão

ia ficar um deserto.

não fala assim. eu sou seu amigo, você sabe. não amigo de telefonar, etc. sou seu amigo num nível mais  

espiritual, entende?

o que eu quero dizer é que você pode contar comigo.

aquele homem, que eu conheci na faculdade há tanto tempo e realmente nunca fomos próximos, mas

nos gostávamos à distância pelo menos eu

que o via tocando gaita no pátio.

algumas amigas minhas tiveram um caso com ele

e eu ia o conhecendo

através do que elas me contavam, a maioria apaixonada ou gostando muito dos amassos no banheiro.

teve um dia

que eu acabei indo na casa dele

pra buscar um pôster do Allen Ginsberg que ele emprestou de bom grado para uma exposição que eu estava organizando. na hora que eu entrei no apartamento

a mãe dele descansava no quarto

numa cadeira de balanço que eu vi só pela sombra na parede.

ali

foi a vez de entendê-lo agora não mais pela perspectiva das mulheres que ele teve e que me contavam que ele era gentil na cama

mas no café da manhã

era outro

já não se relacionava com aquela troca de olho que acontecia nos lençóis. ali

na casa dele

eu comecei a descortina-lo pelas coisas que ele tinha, os discos,

o edredom embolado,

o escuro do quarto luz de

abajur o cheiro

de maconha

a máquina de escrever. agora

anos depois

cá estamos novamente

nós que lançaríamos livros perto um do outro

o dele já era no sábado

o meu em 2 semanas.

ele me disse que veio correndo para o encontro que marcamos

deixando louça na pia

e também os poemas

espalhados pelo quarto

com ele tentando entender a ordem que eles teriam no livro

e eu pensando

que isso já era pra estar pronto se o lançamento seria em 3 dias.

por acaso seu livro ainda não nasceu como projeto gráfico? eu quis perguntar

mas preferi não entender

escolhi ficar com a imagem dos poemas espalhados na cama

esperando ele voltar pra casa

uma folha beijando

as costas da outra de acordo com o que o autor desejar

e ele me dizendo dos imprevistos

e do quanto a vida tem que ser menos racional, olha essa tatuagem por exemplo. (ele levantou a blusa pra me mostrar)

começava no braço

e ia até a barriga

parecia feita de linha

parecia que era só puxar e o desenho desmancharia.

minha amiga que fez, ela não sabia o que ia desenhar em mim até começar, foi tudo no improviso.

como no jazz.  – eu disse

-é. como no jazz.

fiquei olhando

aquele peito tatuado

não como um convite pra beijar o mamilo

mas puramente como um encontro

da pele com o desenho.

então ele me contou uma história de amor. disse que um dia

uma mulher se apaixonou por ele

mas ele

era bicho solto

não queria se amarrar a ninguém. ainda assim eles ficaram juntos

como ficam os leões, depois

cada um prum canto

se lambendo.

anos mais tarde eles se reencontraram ao acaso, ela estava

diferente, ele

estava diferente

e dessa vez quem se apaixonou

foi o meu amigo

dessa vez

quem colocou quem contra a parede

foi ela, por que você está me cobrando o que você mesmo me ensinou a não cobrar?

 

sim, ele disse. você tem razão, ele disse

e

foi embora, nunca mais a viu.

ele me contou também dos peitos dela. eram amplos, uma casa,

e o jeito que ele olhou pra frente era como se ele estivesse vendo as tetas.

então meu amigo me disse de uma festa que ele foi.

ele conheceu algumas pessoas

e todas elas, ele foi descobrindo, tinham tido uma história com essa mulher que ele se apaixonou.

num dado momento da noite, estava rolando uma fogueira na festa,

eles olharam pro céu

e gritaram juntos

o nome dessa mulher

pra lua.

-nossa. – eu disse desejando

oferecer meus peitos pra ele

morar.

 

-se eu

tirasse a roupa agora,

o que você faria?

-tira. – ele me disse

e não era amor.

alinebei

Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei 

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