
‘On the Waves of Love’ (1896), de Edvard Munch
quando temos pouca idade
qualquer quintal pode virar um país.
ainda mais na companhia da nicole, deitei no chão e fiquei tentando
ver o céu igual um galo.
virei meu rosto
todo pro lado, 1 olho
de cada vez. acontece que
testar com o céu esse jeito de ver em quinas
não tem lá muita graça
já que o céu
é um todo
idêntico até nas pequenas variações.
seria melhor se eu deitasse numa rua pra olhar a cidade
apesar que isso
pode ser perigoso, já vi bastante cachorro morrendo assim. agora galo
nunca,
galo fica muito preso ao lugar onde ele nasceu.
minha amiga
também estava brincando
de ver com 1 olho de cada vez,
o quintal dela virou uma fazenda.
-em nova jersey! – eu disse,
já suada como eu ficava quando me divertia muito. tinha ouvido num filme esse nome nova jersey e
achei bonito, dei ele pra tudo quanto é coisa que eu gostava, boneca, planta na rua, gibi na gaveta.
– cansei ser galo. – avisei.
me tornei então um tocador de gaita
negro como aqueles cantores de blues que eu via na tv.
além disso
eu tinha um galo
que era a minha amiga nicole
e então ficou tudo acertado, não mudamos mais de personagem.
o sol
estava morno, eu me sentia dona
do mundo. a ardósia era o mato, fui abrindo caminho com o meu facão.
me imaginei com uma galocha que vi no shopping
e pisava
enormemente
como se o chão fosse
degrau. foi quando a mãe da nicole apareceu.
-e aí, moça? que horas você vai fazer a sua lição de casa?
e foi um corte
na nossa brincadeira, parecia que a mãe dela tinha pego o meu facão e trá na diversão da gente,
fim.
a mãe entrou pra sala com o recado dado, a nicole murchou de um jeito,
o galo dela até morreu.
– tenho que entrar. – ela me disse.
– tudo bem. – respondi sem escolha
e a nicole me levou até a porta.
voltei pra casa
ainda tocando minha gaita imaginária
pra segurar o cantor de blues em mim, não queria que ele morresse
como o galo da nicole tão
rápido.
bati
na porta de casa, demorou pra minha mãe atender.
não bati de novo
sabia que minha mãe não gostava quando eu batia de novo.
então ela abriu, finalmente,
estava com o queixo duro.
– oi. – eu disse entrando, ela me puxou pela gola.
– que horas eu mandei você voltar?
– hum. 5? – respondi ainda cantor.
– e que horas são?
– não sei mãe, não tinha relógio na casa da nicole.
– ah não?
– não.
– e esse relógio aí no seu pulso?
é mesmo, eu tinha me esquecido dele, na verdade eu tinha tornado meu relógio invisível porque cantor de blues não tem nada no pulso, eles sabem da hora pelo sol.
– e que horas são agora? – ela perguntou de novo.
– 6 e 15. – respondi depois de uma pausa.
então minha mãe puxou
o cinto da calça
e estalou o primeiro couro em mim.
perguntou:
– que horas eu mandei você voltar?
– 5?
–5? – ela disse me imitando– eu mandei voltar às 5, repete firme, 5.
–5.
–e que horas você voltou?
– 6 e 15.
outra cintada, agora na coxa.
–sua mal criada. você precisa aprender a me obedecer. que horas eu mandei você voltar?
– 5. – repeti já sentindo
desespero
e cada vez que eu repetia
tomava outra cintada
na perna, na bunda, nas costas
menos no rosto, no rosto minha mãe nunca me bateu.
àquela altura, meu personagem já tinha me abandonando
ficou em mim só a tentativa de encontrá-lo, não o culpo, ninguém gosta de apanhar assim.
-por favor. –pedi
não gostava de olhar pro rosto da minha mãe enquanto ela me batia, eu sentia medo de desejar que ela morresse
porque uma vez eu desejei
e depois que a raiva passou eu fiquei muito arrependida.
rezei por horas
pra desdesejar aquilo, não queria perder a minha mãe, ela não era calma
como as da tv
mas no mundo existiam mães piores do que a minha.
como a minha tia, por exemplo, que não deixava minhas primas usarem os brinquedos que elas ganhavam de aniversário.
então minhas primas brincavam com os cabelos umas das outras
às vezes embaraçava e isso
dava trabalho pra minha tia que, enfurecida, batia nelas no banho,
minha mãe nunca me bateu no banho.
também não fecho os olhos
enquanto apanho
tenho medo de fechar e isso
ser morrer
quando de repente aquela surra, assim como as outras, chegou ao fim.
minha mãe voltou o cinto pra calça
me botou sentada numa cadeira.
disse:
– tá de castigo.
sentar me doía o corpo
posso ficar de pé?, eu quis perguntar, achei melhor não
e fiquei ali
pelo tempo do meu atraso, 1 hora e 15, demorou bem mais do que no quintal da nicole.
– teu pai vai saber do que você aprontou, ouviu?
depois que você sair do castigo
vai direto pro quarto pedir perdão pra Deus
que Ele só gosta de criança que obedece
as que não obedecem você nem imagina pra onde
essas crianças vão . – ela me disse,
evitando falar a palavra inferno.
★★★★★★
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