Primeira obra de Henry Miller, esse relato autobiográfico e ficcional das aventuras do autor, entre prostitutas e cafetões, entre pintores e escritores sem dinheiro em Montparnasse, foi lançado em 1934 e imediatamente proibido nos países de língua inglesa. Seus trechos de sexo explícito eletrizaram a vanguarda literária europeia, e o livro foi amplamente elogiado por escritores como T.S. Eliot, Ezra Pound e Lawrence Durrell.
Um Henry Miller sem um centavo no bolso e ainda não publicado chega a Paris nos anos 1930. Deixa para trás um casamento em crise e uma carreira estagnada e infeliz nos Estados Unidos – ambos seriam retratados posteriormente em Trópico de Capricórnio.
Mas neste Trópico de Câncer, o momento é de libertação. Miller depara-se com a vida boêmia da capital francesa. Não apenas a enfrenta, mas, sem hesitações e com vigoroso deleite, vive dias e noites de erotismo e liberdade. No livro, escreve com uma franqueza simples, um humor generoso e a alegria encontrada depois de se ter passado pelo extremo do desespero.
Com primeira publicação pela Obelisk Press, em Paris, o livro foi exaltado por Samuel Beckett como “um evento monumental da história da escrita moderna”. Em 1940, George Orwell definiu Miller como “o único escritor de prosa com algum valor que apareceu entre as raças anglofônicas em algum tempo.” Orwell não compartilhava dos valores morais de Miller, mas soube reconhecer sua escrita lúcida, honesta e poderosa.
Trópico de Câncer venceu uma censura de quase três décadas, sendo lançado em 1961 nos Estados Unidos e, em 1963, no Reino Unido – período em que vendeu mais de dois milhões e meio de exemplares. Foi só nos anos 1960 que, saudado por seus ideais libertários, pôde ser bem recebido pela contracultura americana. O país em que nasceu e que embargou suas obras também transformou Henry Miller em profeta da liberdade e da revolução sexual.
TRECHO
“Aos poucos, o quarto começa a rodar e, um por um, os continentes escorrem para o mar, só a mulher sobra, mas o corpo dela é uma massa de geografia. Debruço-me na janela e a Torre Eiffel borbulha champanhe, toda construída com números e envolta em renda preta. Os esgotos gorgolejam furiosamente. Em toda a parte há apenas telhados, arrumados com execrável destreza geográfica.”
Cinco anos depois da publicação do escandaloso Trópico de Câncer (1934), Henry Miller lançou este Trópico de Capricórnio (1939). Não repetia a fórmula anterior, apesar de o erotismo e a sexualidade ainda serem extremamente evidentes, mas alcançava um tom mais subjetivo e mais denso. Nele, Miller conta seu passado em Nova York, história-mito anterior à parisiense relatada no primeiro livro. Um passado permeado por considerações existenciais e em tons de cinza, da falta de trabalho e de dinheiro a um emprego odioso.
Neste Trópico, Miller, em sua arrogância e em sua bondade, é ainda mais honesto com a natureza humana. Afirma: “(…) parece que fiquei completamente indiferente: a maioria das crianças se rebela, ou finge rebelar-se, mas eu estava cagando. Era um filósofo quando ainda usava fraldas. (…) sou até um pouco pior, porque via com mais clareza que eles e ainda assim continuava impotente para alterar minha vida. (…) Viviam me exortando a não ser tolerante, sentimental nem caridoso demais. Seja firme! Seja duro!, advertiam-me. Foda-se!, eu dizia a mim mesmo, vou ser generoso, maleável, misericordioso, tolerante, carinhoso. No início ouvia todo mundo até o fim; se não podia dar um emprego a alguém, dava-lhe dinheiro, e se não tinha dinheiro, dava-lhe cigarros ou coragem.”
Nas considerações sobre si, o autor também não parecia mais inclinado ao otimismo: “Meu amigo Kronski zombava de mim por minhas ‘euforias’. Era a forma disfarçada que tinha de me lembrar, quando eu estava extraordinariamente alegre, que no dia seguinte estaria deprimido. Era verdade. Eu só tinha altos e baixos. Longos períodos de tristeza e melancolia, seguidos por extravagantes explosões de alegria, de uma inspiração que parecia um transe. Jamais um nível em que fosse eu mesmo. Soa estranho dizer isso, mas nunca fui eu mesmo. Ou era anônimo ou a pessoa chamada Henry Miller elevada à enésima potência.”
Trópico de Capricórnio não é libertário como Trópico de Câncer. Pelo contrário, nele, o sexo parece mais escapismo do que celebração, fuga de uma realidade cruel e opressora. Mas, mesmo pessimista, a situação extremada parece pedir uma reação, que, como se sabe, viria com a ida a Paris.
TRECHO
“Assim como a própria cidade se tornara um imenso túmulo em que os homens lutavam para conquistar uma morte decente, também minha vida veio a parecer um túmulo, que eu construía a partir de minha própria morte. Eu vagava por uma floresta de pedra cujo centro era o caos; às vezes, no centro mesmo, no coração mesmo do caos, eu dançava e bebia estupidamente, ou fazia amor, ou amizade com alguém, ou planejava uma nova vida, mas era tudo caos, tudo pedra, e tudo irremediável e desconcertante.”

Henry Miller
Nascido em Nova York, em 1891, Henry Miller é considerado o percursor do estilo subversivo nos anos 1930. Escreveu literatura libertária e pornográfica, e teve seus livros proibidos em vários países. Suas principais obras são Trópico de Câncer, Trópico de Capricórnio e a trilogia Sexus, Plexus e Nexus.
★★★★★★
TRÓPICO DE CÂNCER
Henry Miller
Tradução: Beatriz Horta
Páginas: 292
Preço: R$ 42,90
Editora: José Olympio / Grupo Editorial Record
TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO
Henry Miller
Tradução: Marcos Santarrita e Angela Pessôa
Páginas: 322
Preço: R$ 42,90
Editora: José Olympio / Grupo Editorial Record