
George Brassaï, 1937.
eu gostava de imaginar que aquelas louças
eram presidiários
que tinham tomado banho e agora voltariam
para as suas celas,
eu secava os pratos pensando que eles tinham assaltado um banco
colocava os bandidos um em cima do outro.
Muito bem, por hoje chega
e com força eu guardava todos
no armário.
-ei.
cuidado pra não quebrar a louça. – minha mãe dizia.
o prato que ficava por baixo
tinha matado alguém durante o assalto
então agora ele tinha que carregar o peso de todos os outros pratos, merecidamente.
eu ficava pensando em quantos assassinatos as facas já tinham cometido
prisão perpétua, eu dizia pra elas, vocês
vão envelhecer aqui.
mas era da panela
o mais terrível dos crimes
numa noite de setembro ela tinha cozinhado uma criança igual a bruxa
do 71
e eu disse pra ela você será queimada
todos os dias
sem morrer.
tenha piedade, elas pediam.
calem-se! –eu respondia
nenhuma louça se metia comigo
mas secretamente, eu sabia, elas bolavam planos de fuga.
-seca essa louça direito hein menina. – minha mãe dizia.
– já volto, Nicole.
eu avisava minha amiga
quando minha mãe aparecia na rua
me chamando pra ajudar na cozinha. minha mãe não gostava que eu me divertisse muito, quando eu estava no ápice brincando de bola
minha mãe vinha até a porta
e me chamava pra ajudar.
-como era você criança? – eu perguntava pra minha mãe quando ela estava calma, mas ela estava tão
calma que
dormia,
não me ouviu.
-já volto. – eu dizia pra minha amiga Nicole.
mas eu demorava tanto
que escurecia
eu demorava tanto que
a Nicole começou a parar
de brincar comigo
arrumou outra amiga na rua debaixo
comecei a dizer já volto só pra bola.
eu
me sentia sem sorte
por ter calhado de nascer numa casa com mãe precisando muito
de mim.
um dia secando louça
a brincadeira da prisão já perdendo
a graça
repetir as coisas vai tirando mesmo
a graça
quando ouvi um estouro
tremendo.
-o que foi isso? – minha mãe perguntou virando o pescoço
foi a minha bola
eu tinha certeza que foi a minha bola, mas
não disse.
se dissesse
minha mãe ia me chamar de irresponsável
por largar brinquedo no meio da rua, ia falar que
meu pai trabalha como um louco pra trazer as coisas pra mim e eu largo tudo por aí como uma idiota.
continuei secando a louça
imaginando minha bola segundos antes do carro passar quando ela ainda tinha chance
e segundos depois
que o carro passou
na rua com bola esperando a menina que disse:
– já volto.
e não voltou.
– agora não precisa mais me chamar. – eu disse pra minha mãe. – agora
eu estarei sempre aqui.

George Brassaï, 1937.
★★★★★★
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★★★
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