Teatro é como mocotó: se você gosta, você sabe onde encontrar. Não precisa de propaganda, endereço, dia, agenda, clima; se gosta, acha. Toda vez que ouço as frases: “não fiquei sabendo”, “não achei o endereço”, “faltou divulgação”, lembro de mocotó. E se você é especialista, não só acha, como conhece todos os lugares que servem a iguaria, e sabe dizer sem pestanejar qual é o melhor mocotó da cidade. É uma questão de gosto, conhecimento e hábito. Acontece igual com o teatro.
O problema do teatro não é divulgação, é hábito. A forma que a sociedade desenvolveu para camuflar a fissura na sua formação cultural atende pelo nome de divulgação – ou outras tantas desculpas esfarrapadas que se ouvem quando há a necessidade de se mostrar antenado e esconder a falta de hábito de ir ao teatro. Hábito, tal qual o hábito de ler, ir ao estádio, fazer exercícios; são hábitos culturais que prescindem de desculpas mercadológicas, marketológicas, comercialógicas, economicológicas. Você tem ou não tem. Em toda a minha vida acho que nunca vi uma propaganda de mocotó… talvez uma ou duas.
O que esse diagnóstico revela é que são elas. Qual a possibilidade de um cidadão ter o hábito de ir ao teatro se durante toda a sua formação não soube o que é, nunca frequentou, e tampouco acompanhou qualquer gesto dos pais na menção dessa prática? Nenhuma. Tiro por mim: é muito provável que eu tenha assistido a minha primeira peça de teatro já adulto – a virtude que o envelhecimento traz são os balanceios da memória, os disparates das lembranças e cronologias, facilitando a minha escrita ao construir a ficção que preciso no momento, transformando-a na mais pura verdade sem a necessidade despudorada de ter que inventar a história, pois imagino estar tirando-a do mais profundo recanto da minha lembrança.
Com uma realidade social como a nossa, é muito pouco provável que ações de formação de plateia surtam efeito a curto ou médio prazo. Gratuidade, divulgação massiva, estratégias de marketing, são ações que favorecem a fruição do espetáculo que é objeto da campanha, do projeto, da ação, mas não necessariamente estarão formando um espectador de teatro. Espectador de teatro não se forma, se torna, a partir da formação “de mundo” que recebeu, do entendimento concreto do sentido de cidadania; e não através de ações concentradas na linguagem, como as necessárias aulas de teatro nas escolas e demais instrumentos que se tem visto por aí para tentar melhorar a relação do cidadão com o teatro. É muito mais do que isso. É entender que a fruição do teatro não é firula, favorece o cidadão na compreensão da sua origem, no entendimento da sua identidade, no assentamento da sua brasilidade.
É aí que entra a famigerada função do estado. Grande parte da formação do cidadão fica a cargo da qualidade das políticas públicas, e nesse caso, a multiplicidade de exemplos mundiais não nos deixa mentir. O hábito de ir ao teatro é um exemplo de civilidade, pois os códigos de linguagem que ali são operados demonstram a qualidade na formação do cidadão que frequenta, não sendo possível atribuir essa fissura no hábito somente à educação familiar. É o estado que se omite e falha na construção de cidadania. Por isso sempre nos surpreendemos com países onde o povo tem o hábito de ir ao teatro, e ficamos maravilhados com a sua civilidade. Essas comunidades certamente tiveram acesso a políticas públicas culturais de qualidade por séculos seguidos. Você não vê, mas o estado está lá, responsável pela parte que lhe compete na formação do cidadão. Não é da noite para o dia.
E de que maneira o cidadão que não faz teatro pode contribuir para a formação desse hábito? Tentando entender a sua falta de hábito, penso eu. Tentando entender que preguiça é essa que assola seu corpo no momento de se levantar do sofá. Não inventando desculpas esfarrapadas por não ter assistido a um espetáculo que ficou semanas seguidas em cartaz. Escrevendo na linha do tempo das suas redes sociais o quão significativa foi a sua experiência ao prestigiar o espetáculo da vez. Arrastando junto para a experiência o letárgico amigo que não larga o Game of Thrones. Conhecendo os teatros da cidade para não ficar comentando “onde é?” na postagem que estampa o endereço, a localização e ainda traz um mapinha desenhado. Chegando pontualmente, para auxiliar a assimilar que ver teatro é diferente que ver televisão ou cinema. Enfim, se você quer ajudar para que o hábito de ir ao teatro no Brasil se torne um dia uma realidade, você pode ajudar de muitas formas, mas a principal é assistindo, e tornando esse seu exercício um hábito.
É possível. Em sete anos adquiri o hábito de escrever para você semanalmente através desse exercício. Claro que tudo o que escrevo, e principalmente o que este texto concentra, é permeado de superficialidades, simplismos e chacotas, mas não podia ser diferente. Se já não existe o hábito de ver teatro, que dirá de escrever sobre? Faço a minha parte, expondo periodicamente minhas falências como escritor, na esperança de que você se torne um espectador.
Hábito. Escrever, ir à praia, soltar pipa, dormir de bruços, tomar chimarrão, ir ao teatro. É tudo uma questão de hábito. Agora, se a peça de teatro coincidir com a minha vontade de comer mocotó, vá ao teatro, mas não me chame… chegue logo sexta-feira! Não vejo a hora de comer um belo prato de mocotó!
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P.S. – Zerei a vida. As fotos são do mocotó que comemos ontem no encerramento da temporada do espetáculo “Atenas: mutucas, boi e Body”. Para minha surpresa, pois havia acabado de escrever a postagem quando o Lauande mencionou o cardápio.
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