
Arte de Otto Dix
-eu também fazia isso quando era mais novo. – ele disse.
–quantos anos você tem?
– 30.
-a gente também.
-mentira, com essa cara de menina. – ele disse olhando pra minha amiga
e eu ali, segurando a lanterna, enquanto ela enrolava
a seda,
meu irmão sabe fazer isso melhor do que eu.
abracei meus ombros.
-você tá morrendo de frio, né? eu já tô acabando aqui, prometo.
e eu pensei na minha mãe dizendo
que as drogas eram
o maior desastre desse mundo, ela quase chorava quando dizia. aumentava o volume da tv toda vez que passava um caso de alguém viciado,
a casa inteira escutava fulano de tal está tremendo
fulano de tal está tão magro, uma caveira
a família abandonou
o fulano de tal
agora ele está morrendo
e não se importa.
uma vez eu pedi um chope numa pizzaria.
mais tarde e por acaso
meus pais apareceram no lugar. você está bebendo? minha mãe perguntou.
– é só um chope. – eu disse como se não me importasse
meu coração batendo rápido
meu pai pôs a mão
no ombro da minha mãe, eles saíram sem dizer mais nada.
demorei pra voltar pra casa naquele dia.
quando voltei
meus pais já estavam dormindo, a porta do quarto sempre aberta, eu entrei pro meu sentindo abandono e era
só um chope.
mas naquela noite com a minha amiga
era maconha, eu
não estava fumando
apenas fazendo
companhia pra ela
escondidas atrás de um fiat
olhar o preparo do fumo era como assistir uma dança.
foi quando chegou o dono do carro
dizendo que ele fazia o mesmo quando era mais novo
ele gostou da minha amiga
ela também gostou dele, principalmente depois que ele disse que ela tinha cara de menina, a minha amiga não quer morrer. então ela conserva o rosto, com cremes e máscaras de
rejuvenescimento, assim a Morte
fica perdida e se um dia Ela se irritar
vai ser do tipo de óbito que comove as pessoas, quem morre com o rosto jovem vira uma espécie de herói. até no cemitério,
uma vez eu caminhei por um com a minha irmã. a gente viu o túmulo de um homem que morreu com 25, Cristian ele chamava, ficamos olhando a foto dele nunca mais esquecemos daquele rosto.
– senta aqui com a gente, – minha amiga disse pro cara.
-não, brigado. eu tenho que voltar pra casa.
-você não é daqui?
-eu moro em Santana. mas venho sempre pra cá na casa do meu primo. eu gosto, dá pra ver bem o céu.
ali era serra
o ar era menos
poluído.
então o cara se despediu. entrou no carro, ligou o motor. por um segundo eu pensei que ele podia
passar por cima da gente ao invés de ré,
cometei com a minha amiga
-ele pode nos matar com esse carro.
– cala a boca – ela disse rindo. – quer um pouco?
-não sei tragar.
(o cara deu ré, buzinou e foi embora. minha amiga acenou, eu fiquei parada)
-você pode engolir a fumaça enquanto eu assopro na sua boca, dá no mesmo,
quer?
-pode ser. – eu disse um pouco tímida, não gosto de abrir a boca perto das pessoas
fico com medo de estar com o hálito ruim
porque uma vez eu estava
e beijei um garoto, ele me odiou para todo
o sempre.
-vem mais perto. – minha amiga disse
engoli sem jeito
a fumaça
dentro dela o choro
da minha mãe.
★★★★★★
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★★★
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