
‘O pintor: à Lua’ (1917), de Marc Chagall
o menino se esparrama
no quintal ainda de cimento
a família se mudou antes do combinado
era isso ou eles não teriam
casa. a gente dá um jeito, a mãe disse pro pai, beijando a boca dele que estava seca.
você devia beber mais água, ela disse.
e você? que só sabe implicar.
o menino
passava muito tempo ali
no quintal. tanto que começou a pensar num mundo sendo cinza
menos o céu, o céu podia continuar com os seus azuis.
nesse dia esparramado
ele começou a
reparar nos detalhes do chão como fazemos com o rosto de alguém que amamos, o rosto da mãe,
ele começou a passear os dedos
pelo cimento
a pele dele foi ficando Macia. continuou
também no muro
e depois no chão de novo
pensou que o seu quintal poderia ser a barriga de um grande bicho
uma mistura de dinossauro com baleia
e ele morto
morando ali.
imaginou que o bicho estava se sentindo bem hoje
porque a comida que ele engoliu estava fazendo um carinho nele por dentro
mas o dinobaleia não sabia disso, ele não tinha olhos no estômago pra ver a mão do menino acariciando seu avesso,
então ele pensou que aquela sensação era só uma alegria
sem motivo, como às vezes nos acontece.
o menino continuou com a palma
pelo cimento
foi quando ele imaginou um novo corpo sendo devorado pelo bicho.
pegou seu coelho de pelúcia, o Alfred,
correu com ele
simulando a queda
pela garganta
pá, no estômago, o menino soltou o coelho no chão.
fez de conta que estava vendo o Alfred pela primeira vez.
–quem é você? – perguntou como se despertasse de um sono.
-sou alfred. acabei de ser devorado por esse animal gigante.
-eu também fui devorado! estou morando aqui faz mais de 20 anos.
–tudo isso? e você continua criança?
-é que eu morri, daí o tempo para. você morreu também, mas pelo menos agora estamos juntos.
-é. – o coelho disse esperançoso.
deu um trovão.
-Davi, vem pra dentro.
por que? o menino pensou.
-é só um arroto, mãe.
a mãe parou
na porta da cozinha olhando o céu, depois
o filho.
sentiu pena
não da inocência, mas
da Perda.
★★★★★★
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★★★
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