
Arte de Henri Matisse, 1939
-você não quer levar o pão também? é a mesma massa da pizza.
-ah é?
tá quanto? (eu sabia o preço,
já tinha visto uma porção de gente comprando, mas
eu estava tentando ganhar tempo
porque na verdade eu não queria comprar aquilo, não por mal, eu realmente gostava da massa, acontece que
eu nunca tinha comprado um pão na vida tirando os franceses de domingo
então por que justamente hoje
eu compraria um?)
-15.
-não sei se tenho dinheiro aqui. (uma pausa) vocês aceitam cartão?
-sim.
–então vou levar. pego depois da aula, pode ser?
-claro. vou deixar ele esfriando um pouco antes de embrulhar.
-obrigada.
sentei na mesa com o meu pedaço de pizza
desde ontem eu estava com vontade de comer isso quando
achei que não teria e pedi uma torta
de repente a moça chegou da cozinha com a pizza numa badeja.
amanhã não erro, pensei.
abri meu livro,
caiu um pingo de gordura do queijo em cima da palavra Sussurro.
limpei rápida com o dedo pra não manchar
e segui a leitura
daquela história da menina que mata uma amiga do colégio
tudo narrado pela própria menina
eu adoro narradores crianças
as emoções, mesmo as mais densas, ficam todas na superfície
do texto, boiando feito um morto.
foi quando passou o meu professor
se inclinando pra tentar descobrir o que eu estava lendo.
fingi não perceber
o que ele tinha feito
mas eu tinha percebido
e como, no curso inteiro era exatamente isso que eu estava querendo,
ser vista por ele. e foi o que aconteceu, de alguma maneira,
tanto que ontem eu consegui entregar com certa naturalidade meu livro pra ele
mas hoje, engraçado,
hoje eu não estava conseguindo conversar naturalmente
com ninguém.
não sou de falar muito, meu professor tinha dito numa aula. falo aqui porque preciso.
mas na hora do intervalo ele caminhava desinibido
conversando com os alunos e
rindo
eu gostava especialmente do riso
era como se na vida ele nunca tivesse perdido nada.
minutos depois ele passou de novo pela minha mesa,
dessa vez perguntou
o que eu estava lendo.
mostrei a capa.
– não conheço. é bom?
-excelente.
-tem muita gente escrevendo bem, não é?
-humn.
-eu dei uma folheada no seu livro ontem. – ele disse balançando a cabeça como se quisesse me contar mais.
-que legal. mas leia sem pressa,
quando puder.
ele sorriu
e entrou pra sala
entrei um pouco
depois.
a aula recomeçou
com ele falando sobre a Marina Abramovic e o Ulay, de como era forte uma relação amorosa se estendendo pro trabalho
e
pela primeira vez eu olhei pra ele de peito aberto, sem medo,
como se fôssemos exatamente do mesmo tamanho. vi ali um homem tímido, com uma roupa que parecia ter sido usada por dias, um homem brilhante e cansado, com saudade dos pais. ele falou dos pais em vários momentos da aula
enquanto nos explicava do grande amor, das pessoas que de fato podemos confiar.
e então, depois de mostrar vídeos de Marina e Ulay, alguns extremamente eróticos,
ele pediu pra gente dizer
dos desejos que tínhamos, quais são os vossos
desejos? –ele perguntou.
a sala ficou em silêncio
até que uma mulher disse eu gostaria de controlar o Tempo
e eu de ser invisível, disse a outra
eu gostaria de tocar numa baleia.
(risos na sala)
eu queria perder o medo da morte.
olhei ao redor
pra ver Quem tinha dito aquilo
foi ela, claro, uma mulher que reparei desde o começo do curso.
ela tinha uma tatuagem enorme que eu não sabia bem onde começava
e na maioria das vezes ela ficava quieta, escutando,
mas quando falava
alguma coisa, qualquer coisa, ela sempre me emocionava.
-eu quero perder o medo da morte – ela repetiu – saber como é viver sem isso, me desprendendo de tudo.
e alguns alunos a questionaram, será que é bom mesmo perder o medo da morte? será que funciona?
é claro que não funciona, nada funciona, mas é lindo
é o desejo mais bonito que já ouvi.
então o professor começou a falar sobre um livro de um escritor japonês
que contava a história de um lugar com mulheres que não eram exatamente prostitutas
elas apenas dormiam
nuas
e os homens pagavam pra dormir ao lado delas
sem tocá-las, era um compromisso ético não poder tocar, era esse o jogo,
e quando o meu professor disse que eram as mais belas mulheres da cidade
eu me acendi inteira
e pensei que gostaria de ser uma bela mulher aos olhos dele.
-mais algum desejo? –ele perguntou.
-eu tenho. – eu disse levantado a mão. – queria fazer uma festa com todos os autores que estão na minha estante, os vivos e os mortos.
as pessoas riram
o professor também
você estaria na minha festa, fiquei com vontade de dizer pra ele, tenho tantos livros seus.
depois que a aula acabou
alguns alunos ainda brincaram me convida? e de repente eu me lembrei
do pão
ele estava embrulhado me esperando na mesa.
merda, pensei. se a moça que me vendeu não estivesse ali eu ia fingir que tinha esquecido.
peguei ele.
agradeci a moça,
depois fui me despedir do professor, aquela era a última aula.
-tchau. – eu disse num abraço.
-boa sorte. –ele respondeu
e eu pensei em dar o pão pra ele
porque vi outro dia uma poeta dizendo que ganhou um pão e que estava muito feliz com aquilo. ela era tão boa poeta quanto o meu professor, ou seja, a possibilidade de eles pensarem igual sobre um pão como presente era grande.
no fim
fiquei sem coragem e
fui embora simplesmente, ganhei a rua,
ontem eu já tinha dado meu livro pra ele
dois presentes de uma vez era um pouco demais.
caminhei até o meu estacionamento, o pão pesando.
se eu ver aquela moradora de rua ali na ministro
entrego pra ela
(a esquina vazia)
entrei no carro,
coloquei o pão no banco junto com a bolsa e os livros.
quando cheguei em casa minha mãe já estava
dormindo,
acordei ela pra dizer que tinha um pão na mesa, trouxe do curso,
minha mãe não gostava de novidades entrando em casa sem ela saber.
★★★★★★
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