
‘Trasmundo’ (1955), de Remedios Varo
alguém decidiu viajar, acho que foi meu pai.
pra ilha bela,
a menina não conhece
o mar
minha mãe tem medo
de mar
mas a menina não.
então fomos
arrumamos as malas um dia antes
parecia que tinha um rio na minha barriga
preciso ir no banheiro, mãe.
fui
algumas vezes
e pensei que
peixes estavam saindo de mim.
se sentir bem é estar com o corpo sem incomodo em nenhum órgão,
minha barriga não parava quieta,
acho que estou doente avisei minha mãe. ela colocou a mão na minha testa.
tá fresquinha, ela disse fechando
a mala
não mãe, põe a mão na minha barriga aqui.
-você só está ansiosa, filha, amanhã passa.
acreditei e no outro dia
acordei melhor.
entramos no carro com as malas
meu pai ao volante
minha mãe com a mão na nuca dele.
fiquei olhando a estrada
pela janela
parecia que as árvores eram Uma
que se esticava infinitamente tentando descobrir pra onde
eu ia.
pro mar – contei
quando eu cansava olhava o céu. diferente das árvores esse
era lento,
e não parecia se importar com o lugar pra onde eu estava indo. pro mar, sussurrei
e de repente tivemos que
sair do carro
pra pegar uma
balsa, o que é balsa?
-é um barco sem curva.
-e o carro?
-vai junto.
fiquei aliviada.
meu pai
me colocou sentada no capô.
-este
é o Mar. – ele disse.
fiquei olhando o tamanho
parecia com as fotos
só que
molhado
e me deixava sem peixes na barriga enquanto que olhar o mar na foto
me deixava com peixes.
-posso nadar?
-não pelo amor de deus. – minha mãe disse.
ela tinha se afogado um dia
mas não morreu. ou morreu
porque aquela mãe sem medo d `água nunca mais apareceu na rua, aliás na época ela ainda não era mãe, apenas uma
menina
com nada na barriga
o melhor era o vento.
-esse cheiro,
é do mar?
queria usar aquele perfume
passaria todo dia antes de ir pra escola, as crianças me amariam bem mais.
abri os braços
pro mar que o vento trazia
minha mãe tirou uma foto,
sorri.
quando chegamos na pousada era 6 da tarde,
eu querendo muito
nadar.
-leva ela na piscina.
-quero no mar.
-hoje ficou tarde.
-o mar tem hora?
–não esquece a boia – minha mãe disse pro meu pai
ele colocou
a boia no meu braço
-não tira. –avisou se afastando
me senti sozinha naquele espaço
azul.
a porta do nosso quarto ficou aberta, a luz acesa.
a piscina estava boa mas tinha no prédio
e a minha atenção toda hora voltava pra porta aberta.
as vezes
eu conseguia escutar
o que minha mãe dizia, a menina fica tão presa no apartamento, que bom que ela tá se divertindo.
me senti especial quando ela disse isso, também acima de qualquer mal que pudesse existir no mundo,
eu estava com os meus pais em uma ilha
e amanhã eu nadaria no mar.
então meu pai
voltou, naquele tempo ele não apressava nossos assuntos, hoje em dia no telefone é tudo tão rápido, agora mesmo eu fui contar uma coisa pra ele
e meu pai desligou
o telefone tão
rápido, sinto que ele foge de mim. mas naquele tempo não,
naquele tempo ele tinha o corpo sem pressa
vestia sempre uma camiseta branca, a minha mãe também.
-vamos filha? tomar banho pra jantar. (ele se preocupava com as minhas horas de comida)
-entra aqui, pai.
-já tomei banho, amor. amanhã a gente nada junto, prometo.
então eu subi as escadinhas da piscina pra chegar logo amanhã, meu pai me embrulhou na toalha
ela tinha um cheiro diferente
das toalhas lá de casa.
entramos no quarto,
na parede um quadro de barco e âncora
dava pra sentir o cheiro da tinta se eu chegasse bem perto
-sai daí que é sujo.
tomei banho, meu cabelo curto molhado
minha mãe me penteou de frente pro espelho
eu me sentia bonita toda vez que ela me dava banho.
então saímos
do quarto
pra jantar no restaurante da pousada
o chão era um taco de madeira escura
parecia um barco.
-o que significa pousada? – perguntei pra minha mãe que estava linda
de brinco.
-é um lugar onde as pessoas ficam poucos dias, um lugar onde os hóspedes são como borboletas.
no restaurante tomei um suco
de laranja meu
preferido. na tv estava passando um show.
–por que ele tá de óculos escuros? – perguntei.
-ele é cego. – meu pai disse
-ele não tem olho?
-tem, mas não enxerga.
que grave, logo mais ele deve
morrer.
no dia seguinte bem cedo
fomos à praia.
era do lado da pousada
mas na praia o chão
era mole, eu pisava naquilo e meu pé sumia.
-vamos? – meu pai disse me estendendo a mão
fiquei com medo mas não olhei pra minha mãe
foquei no meu pai brilhando ao sol
e na minha boia de braço
e nas crianças que estavam na água e pareciam felizes.
meu pai me pegou no colo.
feito saia o mar foi vestindo
a parte debaixo
dele e
meus pés, minha barriga,
era frio, depois
passava,
era enorme o cheiro também
fechei os olhos
cantando por
dentro
jogia iso mamad.
★★★★★★
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★★★
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