Santiago Santos: Cavalo sem ferradura morre novo

 

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O que Lourenço queria mesmo era abrir o zíper da calça, esticar os pés noutra cadeira e deixar a cerveja escorrer pela boca e trincar a goela. Mas não. Júnio tinha os dois cotovelos apoiados no outro lado da mesa amarela da Crystal, as mãos enfiadas nas bochechas segurando o peso da cabeça, os olhos fixos nas peças. O pessoal fechava um círculo ao redor, encurralando sobretudo o calor. Lourenço limpava o suor da testa de trinta em trinta segundos, sentia as gotas escorrerem das axilas pelo torso, o sumo empapando as costas dos joelhos dobrados. O cheiro doce da costela vinha num ocasional rasante da brisa, perto da churrasqueira tocava Jorge e Mateus, o som alegre das crianças batendo na água e pulando na piscina, e ele ali, se lascando pra se concentrar, pra ignorar o bafo da cerveja que decolava dos muitos dentes amarelos pra pousar nas suas narinas, pra não virar a mesa em cima do adversário.

Moveu o cavalo. Era um xeque, mas um xeque inútil.

A maior parte do pessoal já tava de Havaianas, alguns descalços mesmo, sem camisa ou com a camisa encharcada nos ombros, chuteiras e meias amontoadas num canto do campo, secando no sol. A pelada tinha sido boa, vários gols, mas a plateia lá não sentiu um décimo da tensão que sentia essa aqui. Alguém gritou pro Júnio jogar de uma vez, mas o homem não deu bola, mergulhado em seus cálculos. Depois de alguns segundos moveu o bispo e comeu cavalo de Lourenço. Na sequência Lourenço comeu seu bispo com a dama. O pessoal soltou um uuuhhh.

O adversário não dava indicação nenhuma disso, e Lourenço duvidava que algum dos amigos ao redor tivesse sacado, mas o jogo já tava decidido. Foi arrematado logo no começo com a abertura antecipada dos peões pela esquerda, o flanco exposto. Não tinha a mínima vontade de mijar, mas levantou e disse que precisava, Júnio olhou enfurecido, pediu pra acabar antes, Lourenço disse que ia mijar na calça, o pessoal abriu um buraco, ele desaguou pesado pela trilha até o banheiro da entrada, colado na casa do caseiro. Jogou água na cara, massageou os olhos, secou com dezenas de folhas de papel-toalha. Quando saiu foi pro outro lado.

Os carros reluziam no estacionamento. Andou até sua Saveiro prata, lisinha, limpinha. Os dados de camurça pendurados no retrovisor, o adesivo da troca de óleo colado na semana passada, a antena em cima da cabine, os limpadores a postos no para-brisa. Deu a volta, abriu a tampa da caçamba, deitou ali no plástico duro ondulado, pensando nas mudanças que já tinha feito pros amigos, nas trocentas peças de ar-condicionado que tinha carregado pra empresa. As costas queimavam mas ele permaneceu, a claridade cegante fechando seus olhos até que uma nuvem passou na frente e conseguiu abri-los. Ouviu os passos de alguém se aproximando, parando ao lado da caçamba. O caseiro. Perguntou se tava bem, o pessoal perguntava por ele.

Lourenço saiu, fechou a tampa e disse que tava tudo bem sim. Voltaram juntos. O caseiro disse que a costela tava cheirosa, o Morsa era um monstro com os espetos. Lourenço concordou. Lembrou que o Morsa queria vender um ar-condicionado velho de caixa do seu escritório porque ia comprar um split.

Voltou pra mesa, pras piadinhas, acharam que tinha fugido, já tavam botando a polícia no rabo dele, alguém gritou e riu. Pediu uma cerveja, alguém trouxe uma Itaipava trincando e enfiou na sua mão. Ele abriu. Não teve coragem de olhar pras chaves dos carros ao lado do tabuleiro, ainda que reluzissem, o facho de luz atravessando uma brecha na folhagem da árvore. Mais três jogadas e o jogo era de Júnio. O desgraçado sabia disso, mas ainda não esboçava. Lourenço moveu um peão. Depois dosou as duas jogadas restantes. Queria pelo menos terminar a latinha antes de encerrar a partida. Esse tanto era dele.

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