
‘A Janela’ (1925), de René Magritte
-ela me humilhava muito. porque era mais velha, porque a casa era dela. meus amigos me avisaram, essa mulher está te matando.
eu briguei com eles, com todos eles.
-eu entendo,
você
estava apaixonado, mas
da próxima vez abre o olho quando um amigo te avisar. o cara joga no seu time, ele não quer seu mal.
-eu sei. pensei muito sobre isso, pedi até desculpa. eles disseram tudo bem, relaxa
mas eu senti que alguma coisa se quebrou.
fazer o que, agora
já foi
e em alguns momentos eu até me sinto bem de ficar assim, sozinho, com o meu tempo voltando a ser meu.
-estar sozinho é legal pra trabalhar, a gente fica com mais foco.
-é, pelo menos profissionalmente eu tô vivendo um momento bom.
-sabe que
eu também já humilhei alguém?
-sério?
-humn, exatamente como a sua ex
com essa coisa de
ser mais velha.
eu não era namorada do cara, a gente era colega de faculdade. e ele me mandou uma mensagem outro dia, um texto enorme, dizendo que se sentia humilhado por mim. ele tinha uns 17 anos na época, eu 24.
e toda hora eu falava que
ele era jovem demais pra isso, jovem demais praquilo.
o duro
é que eu nunca percebi o que eu fazia com ele, pra mim era tão normal brincar com isso. mas pra ele nunca foi uma brincadeira
e a mensagem que ele me mandou ficou ressoando na minha cabeça
porque eu também já fui muito humilhada, por um menino que eu gostava no colégio. tínhamos nos beijado
e ele deslizou a mão pela minha bunda.
então no outro dia ele me chamou de puta na frente de todos, porque eu deixei que ele deslizasse a mão, afinal a bunda era minha. mas não era, né? o corpo de uma mulher nunca é dela. engraçado que sobre ele ninguém comentou nada, o problema foi eu ter deixado.
e se eu falasse ali pra todo mundo que ele era um puto, o que na língua portuguesa já tem uma outra conotação, se eu falasse que ele era sei lá, um vagabundo,
também não daria, se eu
falasse que ele era um galinha mas galinha também não é a palavra, ou seja.
não tem nenhuma expressão na língua portuguesa para eu chamar o cara, até no filho da puta a puta é a mãe,
mas vamos supor que tivesse. eu chamaria ele de X
e não seria levada em consideração,
qualquer coisa que eu falasse não teria peso nenhum
mas o que ele falava tinha a força de uma lei.
-eu entendo o que você está dizendo.
-foi uma época difícil. eu perdi meus amigos, a escola inteira me odiava. por isso que hoje em dia eu tomo muito cuidado com os sentimentos das pessoas, eu nunca quis magoar ninguém.
mas é claro que magoamos, mesmo assim.
-eu sempre falei pra minha ex que ela me oprimia, mas ela me chamava de maluco.
quem sabe daqui uns anos ela pense melhor sobre isso agora que ela tá fazendo terapia.
-o problema é que a gente não tem noção do que as nossas ações podem gerar nos outros. tudo o que fazemos está conectado com o mundo inteiro por uma teia
e qualquer acontecimento, por mais simples que ele pareça, produz na outra ponta uma reação.
-o jeito, pra quem se importa, é tentar viver sem causar muito estrago.
-você se importa?
-às vezes. e você?
-eu tento, mas
é impossível.
depois de tomarmos esse café, por exemplo, terá alguém lavando a nossa louça,
alguém que poderia estar correndo atrás de um sonho
como o de ser um grande cantor.
mas acontece que pra ser um grande cantor
é preciso dedicação
e uma pessoa que passa 8, 9 horas por dia trabalhando num café
não terá tempo pra se dedicar.
-mas se ela não tivesse lavando as nossas xícaras, se não tivesse nenhuma xícara pra lavar, o café fecharia.
-e então estaríamos causando um outro tipo de mal para as pessoas envolvidas com esse lugar aqui. entende? é impossível ter um mundo inteiro feliz. porque a sua felicidade depende da não-felicidade de um monte de gente.
a sua ex agora, por exemplo. ela estava de saco cheio, provavelmente não te amava mais. agora que vocês terminaram ela está se sentindo leve
enquanto você está se sentindo morto por dentro, percebe?
é interminável.
-não existe uma vida que não sacrifique outras, é isso que você quer dizer?
– o que eu quero dizer é que. (um gole no café) às vezes o melhor é não pensar.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
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