
“Room in New York” (1932), de Edward Hopper
ela acordou,
pegou no armário o pote de café. tirou o vaso de cima, abriu o fogão. colocou água na caneca, ele se levantou um pouco depois.
foi pra cozinha. deu um beijo
na nuca dela, ficou na boca um gosto de
sal.
sentou na mesa. começou a beliscar
o que já tinha ali
enquanto olhava pro
shorts que ela vestia
o tempo deixou o tecido
transparente
(na janela topos de árvores, fios
de postes, o vento)
a caneca começou a assoviar.
ela desligou o fogo. despejou a água no pó, subiu o cheiro
de café.
ele deu uma mordida
na maçã, pegou o controle, apareceu no preto
da tv o tele
jornal.
ela caminhou
em direção a mesa, deixou o café ali. sentou no colo
do marido,
ficaram os dois
assistindo
notícias sem pensar em
notícias.
o interfone tocou.
alô? ela disse.
não, ela disse, agora não posso, tenho que trabalhar. fala pra ele que eu ligo depois,
tá? obrigada.
-quem era?
–meu professor de boxe. outro dia trombei com ele na rua, ele falou que tá dando aula no parque. aí eu disse que ia dar uma passada hoje, mas pensei que era de noite.
o marido ouviu olhando pra tv.
o interfone tocou de novo
Oi.
ah, tá bom, coloca ele na linha.
oi meu bem. sim, mas é que agora eu não posso, tenho que trabalhar.
é que eu pensei que a aula era de noite. hann? não,
não tem como. eu sei. sim, eu sei. mas depois eu te ligo pra gente combinar melhor, pode ser? beijo.
-eu pensei que era de noite. – ela repetiu.
–ele cobra quanto?
-50.
ela levantou. pegou duas xícaras no armário.
o marido ficou olhando pros braços
dela
pro nariz de lado, pro joelho ossudo o queixo
ossudo
-tá tudo bem?
um espectro.
-tá. – ele responde despertando. se serve de
café.
ela senta na mesa, abre o pão com faca. será que
pão sente dor? ele fica olhando
aquele formato, aquela cor de
areia, dá pra pôr uma banda de pão na piscina
pra criança brincar de navegar boneco
no rio,
alguém inventou um pão e de repente todo mundo
usa
passa manteiga, come.
-tá tudo bem? –ela pergunta de novo.
-tá sim.
-por acaso você ficou com ciúme?
–de que?
-do meu professor.
-claro que não. – ele disse, a voz dele saiu
débil
o telejornal cheio de
terno
ele começou a reparar nos barulhos que a esposa fazia enquanto mastigava.
imaginou a bagunça dentro da boca dela
os dentes a língua a bochecha trabalhando
depois a massa de pão
descendo pela garganta, o café ajuda
a deslizar.
ele faria
qualquer coisa por aquela mulher
que mastigava
satisfeita
pra depois de 15 no máximo 20
minutos
levantar e ir ao banheiro, religiosamente.
depois que ela saiu da mesa
ele saiu também.
estacionou o corpo
na parede mais próxima
sua esposa cantava uma música que ele não conhecia.
de repente ela deu
descarga
(barulho do papel higiênico rodando)
ligou o chuveiro
ele foi chegando
mais perto da porta
o espelho embaçado, a linha das costas dela parecia o contorno de um país.
devagar ele tirou
o pijama
querendo alongar
os segundos
já o pau
duríssimo
preferia entrar de uma vez
no banho.
★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
Quer ficar por dentro de tudo o que acontece no Livre Opinião – Ideias em Debate? É só seguir os perfis oficiais no Twitter, Instagram, Facebook e Youtube. A cultura debatida com livre opinião
Bem, fiquei agarrado ao seu texto do princípio ao fim! Muito bom, parabéns!
que bom, obrigada!