
Arte de Edgar Degas
ela não imaginava a falta que o billy lhe faria,
quando algo está permanentemente ali
fica difícil mesmo
perceber o tamanho que esse algo tem pra gente
no geral entendemos por contraste
a bia chegava da escola direto pro computador. então o billy ia
até o quarto dela
se espreguiçando com
as patas
ela dava um abraço nele, depois
voltava para as suas coisas, ouvir música, uma chamada angel, girl you’re my angel era a que mais tocava.
–vem jantar, filha. – eu dizia da porta
a gente comia conversando
sobre a escola, como tinha sido, eu colocava minha mão sobre a dela
os dedinhos desapareciam.
-hoje a roberta quase falou. – ela me contava, animada
a roberta era uma menina da classe que
não falava, simplesmente,
e o grande objetivo da vida da minha filha era fazer essa menina falar.
não com todos, claro,
com ela apenas.
uma vez a bia perguntou por papel
você tem voz?
jogou o bilhete na mesa da amiga.
a roberta respondeu
Tenho
e jogou o papel
de volta pra bia
então por que você não fala? (juro que você pode
confiar em mim)
minha filha mandou de novo,
a roberta
estava escrevendo a reposta quando a professora se aproximou
e pegou papel.
-pra diretoria, as duas.
a bia me contou tudo
quando chegou em casa com a advertência
–depois dessa, a roberta ficou ainda mais muda. – ela me disse.
e o billy encostado
no pé da mesa
feliz
apenas por estar. como eu amava aquele cão. foi por isso que tentei
levá-lo com a gente quando nos mudamos
mesmo sabendo que seria impossível pra ele viver num espaço tão pequeno.
-por que a gente tem que se mudar? – minha filha perguntava.
–a mamãe não tá mais conseguindo pagar essa casa.
-mas eu amo essa casa.
-e eu amo você.
nas férias da escola
nos mudamos
olhei o billy pelo retrovisor sentado parecendo gente ao lado da bia no banco do carro e tudo nele era despedida, todos os pelos
e o formato das patas, era como se ele soubesse ou então era meu olho contaminado de
culpa.
quando chegamos
e começamos a arrumar as coisas, tive que vender quase todos os móveis,
eu precisei ficar descendo com o billy direto, ele só fazia xixi em grama, desde pequeno foi assim.
eu não podia
ficar descendo com ele
tinha que arrumar a casa
e voltar pro trabalho em dois dias, minha filha dormindo no sofá.
acendi um cigarro.
olhei a nova vista pela janela
um mar
de outras janelas
o billy se sentou ao meu lado no silêncio que ele era
de repente a bia
levantou do sofá. se aconchegou no meu colo.
-você não estava dormindo?
-te enganei de novo – ela disse e sorriu.
apaguei o cigarro, dei um beijo nela. achei que era uma boa hora de contar.
-meu amor,
a gente vai ter que deixar o billy na casa do tio maurício durante a semana.
-por que?
-olha o tamanho dessa casa bia, não tem como a mamãe ficar descendo com o billy toda hora pra ele fazer xixi.
-e se a gente comprar um tapete de grama?
–o problema é a falta de espaço, a mamãe trabalhando o dia todo, você na escola,
quem vai levar o billy pra fazer xixi, pra brincar? ele precisa de espaço, meu amor, cachorros grandes precisam
e lá no tio ele vai ter.
-mas ele não vai ter a gente.
-ele não vai nem perceber com tanta terra e outros bichos pra ele brincar. é igual quando você tá na escola, você fica pensando no billy ou em mim?
-não.
-então meu amor. na casa do tio maurício vai ser a mesma coisa, ele vai ficar distraído brincando
e quando chegar o fim de semana estaremos lá.
-todo fim de semana?
-sim, todo fim de semana.
-você promete?
foi difícil prometer. eu sabia que ir tanto assim seria inviável, mas
no começo era o que faríamos,
até que a bia fosse ocupando a cabeça com
outras coisas,
pouco a pouco o billy se tornaria apenas uma lembraça que não dói, como tudo. também quando ele morrer vai ser mais fácil
nós não sentiremos tanto
o perdemos antes
e perder algo com vida dói menos do que perder pra morte.
liguei pra bia a música angel.
-você promete? – ela perguntou de novo.
e no fim de semana levamos o billy pra chácara do tio.
minha filha no carro
estava cabisbaixa mas
a estrada
a distraia
o billy ao lado
sempre tão calmo, dava a impressão de que nada definitivo iria acontecer.
a hora que a bia começou a chorar de verdade foi quando a gente soltou a coleira do billy e ele começou a correr no quintal feito um louco
se jogando na grama, rolando
de barriga pra cima, a língua de fora, ela chorava e ria, o tio mauricio com a mão por cima do olho pra proteger do sol. era um bom sujeito, o tio.
– agora ele vai ser livre. – eu disse
o billy correndo atrás das galinhas
achei melhor pegar a bia no colo
e irmos embora
sem ficarmos nos depedindo demais.
– voltamos semana que vem. – eu disse.
– venham sim, estarei esperando.
coloquei a bia no banco de trás
e conforme a gente foi ganhando estrada
o choro dela foi virando
garoa
era bonito ver como a estrada
acalmava a minha filha, ou talvez o tempo
disfarçado de estrada
e depois de
quilômetros em silêncio a bia disse
que agora a roberta era a sua última esperança.
★★★★
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