
“Girl with a Mandolin” (1910), de Pablo Picasso
– é melhor você soltar o estilete – eu disse, tão calma quanto uma viúva há muito viúva.
-solta. -pedi num sussurro. – você não precisa se matar agora.
e o tamanho
que ficou o Olho dela
quando eu disse isso, era como se a íris buscasse
a todo custo
um jeito de
sobreviver.
– vem aqui. deixa eu te contar uma coisa.
eu não queria me aproximar muito
não queria encurralar, seria melhor se ela
soltasse o estilete e
caminhasse apenas
na minha direção.
-por enquanto você não precisa – eu disse
tentando me conectar com a linha
de raciocínio dela, tentando sumir pra me tornar apenas
a voz da consciência dela, nenhum salto, nenhuma afronta, apenas um eco do que ela mesma já estava pensando lá na íris a parte
que ainda acredita.
foi quando o canivete deslizou
pro tapete.
o estrago que ele faria
agora no chão sem barulho. a mão dela
ficou um pouco aberta,
órfã.
-Vem – eu disse.
ela foi dando
passos, as costas em U.
o rosto dela, tão jovem, estava desfigurado pela coragem
que ela descobriu ter
uma parte dela queria mesmo
morrer agora
outra parte preferia seguir tentando.
ela se encaixou no meu corpo.
respirava parecendo um animal pequeno
depois da fuga.
eu a abracei de uma maneira que
flutuássemos
até o sofá
que eu também precisava de
apoio
por isso que gosto
desses móveis antigos
eles têm a força do passado que carregam.
ficamos abraçados,
os três.
a regata cinza que ela vestia
estava escura de suor
e susto
eu disse
-nenhum amor vale isso
eu sei, parece que a sua vida vai desmoronar. e talvez ela desmorone mesmo
deixe que tudo pegue fogo
você vai assistir isso sem morrer. você só vai morrer se quiser, juro que é possível aguentar, já aconteceu comigo, eu fui rasgada
por alguém que eu amava muito
numa idade que eu não tinha voz. o que aconteceu comigo me aconteceu calada
e o mais incrível, eu superei. duas coisas
das mais importantes nesta vida:
o tempo
e a resistência.
se você aguentar um dia
você aguenta o outro
e assim a dor vai se
esvaziando bexiga no céu
até não restar mais nada
além do silêncio.
você se lembrará de hoje pra sempre, claro que sim,
mas vai doer num lugar cada vez mais distante da superfície do corpo. é um fundo de mar, imagine assim. dói mas
tem tanta vida por cima. aos poucos você vai conseguindo começar de novo
encher seus dias
se não com amor
quem sabe com uma música
longa o bastante pra te fazer dormir. quem sabe uma cor
na parede. talvez até um livro.
ela chorava sem
pausa
entregue aos meus
braços
(lembrei do chuveiro
no quintal da minha avó. meu avô na porta da cozinha não perdia um banho
o cigarro interminável
ninguém percebendo
nada,
apenas eu)
coloquei o cabelo dela
todo pra trás num
rabo que não amarrei, uma promessa de rabo que se desmanchou também num choro
e assim abraçadas
comigo dizendo o que me vinha na cabeça
e nessas horas temos que usar toda a nossa intuição
para que se diga exatamente o que deve ser dito
fazendo a pessoa voltar
pra esse mundo
será
que vale a pena voltar?
-vale. – eu disse.
vale porque a beleza existe
até em momentos como este.
★★★★★★
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★★★
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