Aline Bei: Degrau

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‘Retrato de Adele Bloch Bauer’, de Gustav Klimt

ele puxou o quadro de trás da cômoda

 

-esse aqui deu errado. – ele avisou tirando o plástico

eu nunca tinha visto uma tela tão grande

 

-é uma noite? – perguntei.

 

-era.  – ele disse

o desembrulho revelou uma pata, depois

o cavalo

todo

meu amigo afastou o plástico já no chão

com o pé.

-essa cena aconteceu numa represa, eu atravessei mesmo essas águas,

com os cavalos e

 o caseiro.

olhei pro rosto do caseiro

e os cavalos atravessando

pele, pelo, dentes

parece que

vão se afogar.

 

-eles estavam muito cansados, mas eu estava pior.

sabe que às vezes eu fico

pensando no

cansaço. deito na cama quando estou me sentindo assim

e fico observando meu corpo

é algo como estar no limite mas

seguir aguentando.

 

-tem um quê de desespero nessa cena que você pintou,

na água principalmente.

-é que estava frio.

eu fiz esse quadro com a blusa úmida, por seis meses fiquei molhando a blusa na pia

pra tentar manter a sensação desse dia, do peso das roupas.

 

-eu adorava entrar de roupa na piscina quando eu era criança, pra brincar de titanic. o jack e a rose estavam sempre molhados, eu queria sentir o peso disso,

exatamente como você disse.

 

fez-se um silêncio.

 

-mas escuta.

por que você escolheu pintar essa cena numa tela tão grande?

-é que eu queria dar espaço pra solidão dos cavalos, pros fantasmas que eles carregam,

não consegui. o problema foi que eu anulei a minha solidão

pra tentar entender a do cavalo

e preenchi os vazios que ficaram com o meu cansaço físico. acontece que esse quadro não era sobre a exaustão,

era sobre estar sozinho e

ser um animal.

 

-você acabou olhando pra cena de cima.  

 

-quando eu estava ali nadando

bem perto do rosto deles

eu tentei evitar justamente isso, olhar pra eles de cima,  

mas inevitavelmente eu me sentia melhor

do que eles, por não precisar atravessar aquela represa todos dias, por ter uma casa, e ali eu percebi que eu não daria

conta

-mesmo assim você pintou. – interrompi.

 

-acontece que

pra ser um verdadeiro artista eu preciso aquietar alguns eus

e tem um eu em mim, especificamente, que precisava ver o quanto eu não estava pronto pra pintar a cena da represa, que na verdade eu não estou pronto pra tudo o que eu gostaria de pintar,

nem caberia, o tempo vai dando conta de arranjar espaços mas não é tudo que vai me caber, claro que não, por isso que existem outras pessoas pintando, fazendo exatamente o mesmo trabalho que eu, porque na verdade ninguém faz

o mesmo trabalho, cada um ocupa um micro espaço na terra e alcança, se tiver sorte, não a distância, mas

a profundidade.

eu gosto desse quadro por isso. porque no fundo ele não é sobre cavalos

ou represas

ou travessias.

 

-é sobre você.

 

-é sobre o ponto exato em que eu estou na minha vida. se eu morrer agora,

esse quadro se torna um mapa de onde eu parei.– ele me disse, como se estivesse em cima de uma ponte

olhando pra Cidade que é

a vida interior de uma pessoa.

 

aline bei

Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei 

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