
Arte de Nigel Van Wieck
fechei a porta do quarto quando te ouvi chegando
guardei o livro, apaguei as luzes
tratei de ficar
imóvel. atenta
aos sons vindo da
cozinha
a geladeira aberta, os sapatos que você tirou.
a água
preenchendo o copo
a boca no
copo
seus passos
no corredor
meus olhos muito prontos
pra fingir um sono
profundo
assim que você abrisse a porta porque
eu sabia que você abriria
a porta.
foi quando senti o peso
da sua mão
descendo a
maçaneta
e nessa hora, como eu tinha planejado,
nessa hora eu fecharia os olhos pra gente não se ver
mas.
incrivelmente.
por mais que eu tentasse
meus olhos não
fechavam, não eram meus, e a sua cabeça quente
surgiu no vão que a porta
recortou no
Espaço
tá tudo bem?
você pergunta
tá.
já vai dormir?
sim.
não vai ler antes?
hoje não.
boa noite. – você disse encostando
a porta
é incrível como a sua presença
perdura
você demora
pra voltar e ainda assim está sempre aqui na nossa
casa a sua áurea
um pouco no quadro
da santa ceia
um pouco nas
maçanetas
(quem chega sempre abre
uma porta)
no sabonete, especialmente
tem você também no telefone
sua voz moldando frases
no fundo um alívio
ouvi-las, pelo menos um sinal de que ainda estamos aqui.
tá tudo bem, filha?
nunca está.
não é nada urgente, claro, tanto que mentimos
o tempo todo
virando um Hálito e vai ficando
cada vez mais difícil ser sincero simplesmente.
pela manhã
(você na rua
trabalhando)
sozinhas a mãe me perguntou
se eu já tinha te
perdoado.
olhei pra pergunta dela
atrás a cortina
num balaço tão
mínimo, parecia
impressão. foi quando eu comecei a imaginar
o mundo daqui muitos
anos
sendo habitado por
outros seres
a gente nos livros
desses seres
e enquanto eles estudam o que tentamos fazer pelo mundo quando tivemos a chance,
enquanto isso nós estaremos nadando
no azul absoluto da não existência
então sim, respondi pra mãe,
eu já perdoei o pai pelo que ele me fez.
★★★★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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Como pai, senti uma picada de escorpião… dolorida, ainda que passada, sempre presente…