
Arte de Ryohei Hase
eu estava com o meu porco comprado no Texas
mentira
comprado na loja do seu cristovão mesmo
lá as crianças escolhem
se vão levar uma boneca ou um jogo
de tabuleiro
se pudesse eu escolheria
tudo
minha mãe não deixa
ela diz que a gente não pode ficar gastando dinheiro com bobagem
-brinquedo não é bobagem – grito.
ela me dá um tapa
na boca
toda vez é assim. e ainda reclama
essa menina é muito
malcriada.
culpa sua, digo por dentro, não quero apanhar outra vez.
meu porco é única coisa que eu consegui lá da loja do seu cristovão. no dia do meu aniversário minha mãe ficou carinhosa e me deu de presente, foi
macio.
o tempo passou
e lá estava eu no quintal com o meu porco não do texas
quando minha mãe avisou que
ia no mercado
-não mexe em Nada da cozinha, ouviu?
(barulho de porta fechando)
ela sempre fala isso quando sai.
minha mãe tem medo
dos perigos da Cozinha
eu mesma já vi um porco morto em cima da pia.
duas horas depois a gente comeu aquilo, nem parecia o de antes, no prato ele estava quente e rosa
na pia bem mais pálido
será que é o medo? de virar comida. eu te entendo, mister Porco,
eu também fico pálida quando a minha mãe levanta a mão pra bater na minha boca, depois que ela bate eu fico rosa
e quente
igual você
mas eu te como mesmo assim
(garfo na pele
a boca cheia)
já o meu de pelúcia eu nunca comeria
porque eu sei que ele também não faria isso comigo
e a gente tem que confiar um no outro pra dormir junto do jeito que a gente dorme toda noite.
demos as mãos, meu porco e eu, depois que a minha mãe saiu.
subimos até a laje
de lá dava pra ver o tanto
de telhado que existia pelas ruas 5, 11, 17.
eu falei pro porco,
-isso aqui
é o Mundo
não é só o nosso quarto não
debaixo das cobertas onde ficamos conversando até tarde
e depois acordamos arrastados
pra ir pra escola, na verdade só eu, né?que você mora no quarto
estuda, pensa
tudo lá
queria que minha vida fosse assim também.
-mora em mim então. – ele disse.
-morar em você?
como?
-você não vai gostar.
-fala.
-você vai ter que fazer comigo igual sua mãe faz com o porco na pia.
-te comer?
-não. me abrir.
me abre
e fica morando na minha barriga
ou em outros lugares, você que sabe, pode morar nas patas
ou no cérebro.
-pra sempre?
-é. eu acho que você vai aprender mais coisas dentro de mim do que no colégio. porque lá é muito conhecimento mas ninguém aprofunda nada. dentro de mim você vai ficar bem aprofundada.
–humn.
mas como eu vou ver os telhados aqui da laje? eu gosto muito de fazer isso
-pelo meus olhos, ué.
quando você quiser me avisa
eu subo até aqui
e pronto. como você vai estar morando em mim tudo o que eu ver você verá também.
-mas seu olho é só um buraquinho.
-o seu também. ou você pensa que está vendo o mundo todo?
você vê só até onde o olho alcança
e a partir do momento que você escolhe olhar uma coisa
você tá deixando de olhar pra milhares de outras, é assim em qualquer lugar e pra todo o sempre
morando em mim pelo menos você não precisa mais ir pra escola
muito menos apanhar na boca.
-você tem razão,
hoje você tá cheio
de razão.
-vou ficar ainda mais depois que você morar em mim.
-vou pegar uma faca.
-tesoura é melhor.
(a menina dispara
pra cozinha
enquanto a mãe na sessão de frios
procura a validade de um queijo)
★★★★★★
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★★★
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