
Canção à meia-noite e a chuva da manhã (1940), arte de Joan Miro
éramos apenas um casal
olhando o mar esperando o próximo
ano,
talvez um pouco mais vagarosos
do que os outros casais com taças e
rosas
pra iemanjá.
qualquer um ali
poderia morrer nesse próximo ano que começaria em minutos
poderia perder
um ente querido ou
alguma coisa inclusive dentro de si, mas
ainda Não e nós dois de costas
pra tudo isso,
alheios como uma árvore.
acontecia
na parca distância entre o meu corpo sentando e o seu corpo sentado
algo forte e por isso invisível, quem sabe o mar pudesse dar nome ao que nos acontecia,
poderia ser, e eu gostaria de sussurrar isto, porque dizer a palavra já é perder
a palavra
poderia ser a
Felicidade,
?
tínhamos combinado de assistir os fogos mas não esse silêncio, estava tudo dito e calmo entre nós.
enquanto isso as pessoas conversavam
e o que é conversar se não uma tentativa
de deixar um pouco nosso o quarto de um desconhecido.
as vozes
elas iam ficando cada vez mais nas nossas
costas
parecia que eles estavam celebrando um ano que já passou
1996
num filme gravado em super 8 desses que a gente coloca no natal e a família assiste
alguns choram
eu não. estar ao seu lado na praia
era o melhor que já tinha me acontecido
apesar de saber que
hora ou outra a gente teria que voltar pro hotel.
porque não existe ficar pra sempre
e ainda que tivéssemos essa coragem: chegaria o momento em que a nossa
( felicidade? )
se transformaria em
outra coisa
só porque um pássaro voou baixo
demais
e o mar sentiu o cheiro
da ave
e a ave sentiu o cheiro
do mar
e de repente migraríamos para a nossa
infância
você se lembraria da sua mãe bêbada no primeiro natal que ela passou sem teu pai
eu me lembraria do avô que me tocou a calcinha
e de uma festa
anos depois
o vô já morto
que eu não fui, não pude,
e lembraríamos
dos amores que tivemos, dos términos, cada um deles e todos juntos nos trouxeram até aqui na praia onde já não estamos
porque é humanamente impossível
permanecer no agora por muito tempo
assim como a palavra, nós somos feitos de
deslizes, de
fugas,
fogos.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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