
Arte de Egon Sciele (1911)
os 3
trancados no quarto de hóspedes
alguns brinquedos meus no armário agora com roupa
da tia e dos primos que não têm um rosto parecido com
o meu ou
o da minha mãe. ontem
eles entraram no quarto
com malas e
nunca mais saíram
me revirei na cama, meus brinquedos, tentei avisar mamãe. Chega, ela disse
então fiquei esperando amanhecer.
Amanheceu.
fiz xixi, escovei os dentes
a porta do quarto de hóspedes ainda fechada
no quarto de mamãe a cama já com
colcha
desci as escadas
fui pro quintal no canto em que dava pra ver
a janela do quarto de hóspedes
também trancada.
será que a tia e os primos morreram? fechei o olho
pra virar por dentro um quarto escuro igual o deles
imaginei colchões, lençóis, as bocas respirando. então fui até a frente de casa, a mamãe estava molhando o jardim.
apoiei no portão
minha mãe cantarolando
aquela música
das maçãs
fiquei amortecida
assistindo mamãe molhando as plantas
e um pouco da rua
meu rosto
na grade, cheiro de ferro gelado.
–Mãe. – chamei.
quer que eu acorde a tia?
-você já tomou seu leite?
–sim. (menti)
-então vai brincar.
-mas e eles? vão ficar dormindo até quando?
minha mãe me
lançou um olhar por cima do ombro
como se eu tivesse feito a pergunta errada
meus gibis dentro
do armário, uma manga de blusa da tia quase encostando
na capa turma da mônica, que dor.
-aquele quarto também é meu – gritei e saí
correndo
fui pegar a bola
no quintal
passei pelo leite na mesa
minha mãe molhando
o jardim. isso me dava tempo
pra tomar aquilo
só na hora em que ela desligasse a mangueira
e no quintal fiquei batendo
bola
na parede minha parceira
de vôlei
mas na verdade era eu
fazendo tudo
seria mais divertido se a parede tivesse mãos.
desenhei nela
com os dedos no vento
pelo menos me deu fome
e tomei o leite
chocolate na borda
do copo
minha mãe ainda no jardim.
espiei pelo vidro da sala.
ela estava conversando
com a dona tereza.
subi as escadas
(barulho de pé na madeira)
e parei
na porta do quarto de hóspedes
altíssima olhando assim, de frente.
tentei pensar num plano
pra acordar minha tia e meus primos
se pelo menos eu pudesse entrar um pouco.
espiei pela fechadura
mas a chave não deixava espaço
pra ver.
foi quando me bateu um medo
da chave
que a mando de deus bem que podia se enterrar no meu rosto bisbilhoteiro
me transformando numa
porta humana
as pessoas na rua nunca mais me olhariam
nem mesmo eu teria coragem
por isso eu jogaria todos os espelhos num rio.
ficaria bonito
se os rios fossem cobertos por espelhos, o Céu pensando que no mundo só existe azul.
– é sua irmã? – perguntei ontem sobre a tia.
-sim.
-e a minha irmã, cadê?
–você não tem.
-por que você tem e eu não?
Eu
na frente da porta do quarto
de hóspedes
as mãos ao longo do corpo
minha camiseta escrito
i l h a b e l a
c a p i t a l da v e l a
fechei os olhos imaginando todos
os desenhos animados que eu conhecia
eu precisava de um plano, só um, qualquer coisa menos essa espera.
★★★★★★
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