
Arte de Mark Rothko
os sapatos na soleira, a memória dos seus pés
mas agora
é hora de ir para o seu enterro, você está morto, você está sendo velado, aquela rede tão fina no seu rosto feito um véu de noiva te protegendo de quê? agora que você está morto. talvez seja um símbolo, apenas, um respeito ao seu corpo sem alma, a pele depois de morta se passar a mão, se der um beijo,
derrete e ninguém quer
pele de morto na unha. eu vou tomar um banho
antes de te enterrar, decido, eu que só voltei pra pegar uma chave.
ligo o chuveiro
a água esquentando
sei que
sentirei sua morte só daqui Muito tempo, por enquanto estou sobrevoando
a perda.
entro no chuveiro.
penso no seu sapato na soleira, a espera eterna, se ele soubesse que você morreu. se ele soubesse
que outro sapato foi escolhido pra acompanhar seus pés em decomposição. penso que ele preferiria ficar na soleira mesmo, o sol, o vento, as nuvens, a chuva. assistir o tempo
medido por noites
e dias
independentemente de quem morreu. melhor isso. do que terra pra sempre
terra na boca
terra a única coisa ao redor.
cai o sabonete.
pego, o ângulo que fica meu corpo, o azulejo me vendo em posições que você, meu pai, nunca me viu. me toco, a água escorrendo, abro a boca e engulo
as gotas, pequena chuva
particular. o sabonete
permanece imóvel na mão que não está trabalhando
o vento bate a janela do
box: gozo.
me seco. coloco
uma roupa preta como de costume apesar de lembrar com carinho da frase de uma amiga certa vez num velório: a morte precisa de cores também.
abotoo a camisa, minha clavícula despontada. pego
a bolsa, a chave motivo da vinda e dou uma última
olhada pra soleira, o sapato lá, a pena que sinto. procuro as palavras. as melhores pra contar o que, o de sempre? que as pessoas se vão, hora ou outra, e de vez em quando bate de ser bem hoje que a pessoa se foi e não volta, tudo aquilo que já sabemos, pois
decido contar exatamente assim pro sapato
como se partidas não me assustassem
ele estava velho, você sabe, velho e bastante doente
eu disse bem perto
do tecido
quase beijando
o tecido
e saí.
tranquei a porta. esperei
o Elevador
( os sapatos )
apertei o
– 1
( em queda )
desci na garagem rumo ao carro, buscando o carro
(encontram o chão).
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
Quer ficar por dentro de tudo o que acontece no Livre Opinião – Ideias em Debate? É só seguir os perfis oficiais no Twitter, Instagram, Facebook e Youtube. A cultura debatida com livre opinião