quando chegou em casa a primeira coisa que ela fez foi pegar a gaiola.
o prego
inesperadamente órfão sem ter que carregar um peso, nada, começou por isso a reparar no próprio corpo
enterrado na parede há tanto tempo
um mundo de parede
ao redor de seu ferro magro.
eles se olharam, o prego e a parede, mal e mal como podiam se olhar duas criaturas assim tão mortas. pressentiam algo
de ruim.
a mulher
colocou a gaiola em cima da mesa com uma força desnecessária.
o canário
virou a cabeça e seu olho por inteiro preto
parecia perguntar o que, afinal, estava acontecendo ali.
a mulher se apoiou na pia.
chorava, se alguém escutasse, mas
não tinha ninguém
na cozinha
tampouco pro pássaro o ângulo era bom pra entender, a grade na frente, ele mexia ansioso a cabeça de um lado
pro outro.
finalmente ela se virou pra gaiola.
abriu a
grade
o pássaro no pauzinho beliscou o jiló e o jiló escapando
a mulher deu as costas e
foi pro quarto
lentamente fechou
a porta
deitou de bruços na cama vazia
tentando farejar um
rastro dele
algo que tenha ficado, qualquer coisa,
o canário o último vestígio.
ela abriu a gaveta da cômoda, tomou um remédio pra dormir. o jesus no quadro
daqueles que se mexem conforme a gente anda
também dormia.
na cozinha o pássaro
ainda na gaiola
que ele fecharia, se possível, e tentou
o prego e a parede assistindo
o pássaro puxando a grade com o bico
mas
era tudo tão pesado que ele
se desiquilibrou e
caiu
da mesa
com seus olhos tão pretos.
anoiteceu.
foi quando a mulher
reapareceu na cozinha, o rosto inchado,
e viu
o pássaro no chão perto da mesa
ele já tinha virado bolinha pra dormir.
suspirou.
pegou o bicho
ele acordou de sobressalto uma mão de repente em mim.
começou a virar o pescoço daquele seu jeito de lidar com o medo para não
explodir, a mulher
bem que poderia ter dito uma palavra de afeto
algo como
calma,
vai ficar tudo bem
mas seu marido agora estava morto
e ela não sabia mais por onde começar.
caminhou até o quintal
colocou o pássaro
em cima do muro
pensando que ali ele entenderia
o seu novo
Estado
ela bem que poderia ter contado uma história pra ele entender, uma anedota como fazia o seu marido,
ao invés ela voltou
pra cama arrastando os
chinelos
de propósito, jesus observou.
no quintal
o prego e a parede teriam feito alguma coisa se pudessem, o passarinho olhou pra eles. socorro, ele parecia pedir
virando tanto
o pescoço que
uma hora a cabeça caiu.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
Quer ficar por dentro de tudo o que acontece no Livre Opinião – Ideias em Debate? É só seguir os perfis oficiais no Twitter, Instagram, Facebook e Youtube. A cultura debatida com livre opinião