
Arte de Egon Schiele (1911)
a praça estava vazia. eles se sentaram no banco, o vento varria as folhas e o som das folhas se arrastando
-não dá mais, ele disse, a gente não pode seguir brigando assim.
-eu sei, ela disse tão triste. desculpa, ela disse inaudível.
-é sempre a mesma coisa, clara.
a ex casa deles não muito longe
da praça
os móveis cobertos
com lençóis.
-pensei que se a gente se separasse não brigaríamos mais porque acabou mas não acaba, você não entende o que é um fim.
-eu vou me controlar, prometo.
-a gente tem que resolver nossas coisas civilizadamente, clara
-eu vou tentar.
-você não se esforça. você pensa que vai me prender sendo louca.
-eu não faço isso de forma racional, mário, pelo amor de deus.
-você precisa se tratar.
-não fala assim comigo.
os móveis cobertos
por lençóis. o estalo do taco. os tempos áureos vividos ali. na cama, mas não só. também na cama conversando
sobre medos a coisa mais íntima, a mão debaixo do travesseiro
clara começou a chorar.
ele acendeu um cigarro. – minha mãe conhece um terapeuta excelente, trabalha com ela na usp – ele disse.
-eu não preciso de terapeuta muito menos amigo da sua mãe.
-tá vendo como você é impossível?
nos tempos áureos
ele dizia isso em
outro tom
quando ela queria sexo de manhã bem cedo
ele era muito preguiçoso
de manhã bem cedo.
chegou na praça um casal
com filha tão agasalhada que a menina mal se mexia.
ainda assim
ela pegou um galho
da grama
e fincou o galho
na direção contrária que as folhas corriam
tentando frear
o movimento
a clara pediu um cigarro pro não mais seu marido.
ele tirou do bolso, emprestou também
o isqueiro
ela tragou cerrando os olhos
que ainda estavam
molhados
por isso caiu uma gota.
os pais um pouco a frente chamaram a menina.
ela ouviu o próprio nome despertando
largou o galho
e correu
até eles, pequeno desespero nos pés.
a menina então ficou no centro
dos pais
uma mão pra cada um.
agora se você perguntar
pra clara e
pro mário
vocês se lembram daquela família que passou na praça?
que família? – eles diriam
não, eles não viram
nada.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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É CURIOSO CONSEGUIR POETIZAR O COTIDIANO DESSA FORMA.
A poesia tão cheia de vida, e o cotidiano tão cinza, quase uma antivida
é como preencher uma caixa velha e feia com o sol, estrelas e a lua…