Santiago Santos: Dos riscos da super aposentadoria

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ASTRO VOLTOU — alardeiam as telas em gritos ou legendas enormes, coroadas pela imagem esfumaçada de algo se aproximando pelo ar e então disparando pra cima feito um míssil, mergulhando nas nuvens que espiralam em seu rastro. Nem um segundo. Mas em câmera lenta, frame por frame, é possível ver com facilidade os contornos da figura humana, o colante preto, os braços unidos apontando pra cima.

Vi isso primeiro na televisão da lanchonete na esquina de casa. Minhas pernas me carregaram até a cadeira na mesa da ponta antes de desligarem de vez, e pedi uma água. O garçom perguntou algo mas não respondi, de olho no replay das imagens.

Se Astro voltou mesmo, tô fudida. Daqui uma hora, um dia, uma semana. Ele vai aparecer. Ou nem isso. O teto desaba ou uma bala de hortelã atravessa meu pescoço. E não é suficiente fazer as malas e me enfiar no primeiro ônibus, navio ou avião; se ele lembrar meu nome vai chegar aqui na cidade, e mesmo que meu apartamento já não exista, algum amigo ou colega de trabalho serve. O cheiro. A lembrança viva na memória da retina.

Claro que o dia não rende no escritório, e finjo uma dor de estômago pra passar incólume. Gasto o tempo pensando em como justificar pro ser mais poderoso do planeta como o deixamos no escuro quando Rusga reapareceu com uma nova arma. Acreditei mesmo que a ideia da Canário era provar que a equipe não precisava viver sempre à sombra do líder e que daríamos conta sozinhos. Não imaginava que ela… Justo ela. A explosão matou milhares. Astro não vai entender. Eu não entenderia. Aí o nervoso se traduz numa dor verdadeira de estômago e acabo saindo mais cedo.

Na volta pra casa, paro na padoca e fico travada diante das estufas pelo que parecem horas até decidir por um pão doce e um pote de nata, que balançam desengonçados na sacola até o prédio. Entro no apê, guardo a nata na geladeira e ligo a luz da sala.

Ele tá sentado na poltrona, um pé cruzado sobre o outro. O colante preto, as botas surradas, o cabelo encaracolado bagunçado pelo vento. O rosto liso, sem as rugas que já inundaram os cantos dos meus olhos. Do mesmíssimo jeito que era naqueles tempos.

— Nunca achei que você gostasse de papel de parede — ele diz.

— Eu não gosto. Alugado.

— Achei que seria mais honesto se pudesse me ver.

— Ah, sim. O rei da honestidade.

— Sabe, Rosali. Desde que acordei confesso que venho tentando. Entender. Mas não consigo.

— Sabe que não era nossa intenção. Fomos enganados—

— Todos perderam o poder? Ou só você?

— Bom, acho que vai ter que descobrir, não é?

— Acho que sim — ele diz, e seus olhos se inflamam.

santiago-santos

Arte da vitrine por Jean Fhilippe

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