Santiago Santos: Da redenção que se escolhe

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Cinco anos na cadeia. E quem vem me buscar? O Grilo.

Grilo: panaca de quinta categoria que na época em que fui preso era um pela-saco do caralho. Do tipo que você não dá um ano pra espanar, falar bosta, fazer mancada e ser despachado ou apagado. Mas não. Ainda tá no batente. Não levo dois minutos pra sacar que ele não subiu nada na vida dentro da organização, continua burro de carga, mas com o tempo se tornou de casa, de confiança, e vira e mexe recebe essas incumbências de relativo prestígio, como comprar o buquê pra patroa de última hora pro aniversário esquecido, levar os envelopes gordos nas delegacias, buscar o irmão do chefão que acabou de ser solto.

O pão que o diabo amassou: não é só duro, é intragável. Explica a magreza, a calvície, a palidez das bochechas macilentas, cansadas da papa sem sal que ajuda a minar a força de quem cumpre pena. Ser irmão do bã-bã-bã ajuda a manter as coisas lá dentro azeitadas, e mostra que a preocupação foi minimamente suficiente pra assegurar que eu não morresse. Mas tomar uns sopapos, isso seria impossível evitar, visto que meu tempo como xerife fez enxergar atravessado boa parte dos condenados, que acabaram lá por minha causa. Explica o braço quebrado, os pontos no rosto, o furo nas costas de uma faca de escova afiada, e também as rapaduras embrulhadas na fronha, as revistas de mulher pelada embaixo do colchão, eu ainda ter todas as pregas do cu.

A viagem: Grilo fala que se eu quiser trabalho, sou bem-vindo no galpão. Não sei o que é pior. “Se eu quiser” ou “galpão”. Braçal mesmo, peão, pra lá e pra cá com caixote no lombo. A mensagem não poderia ser mais clara. Puta que pariu. Cinco anos lá dentro pra aliviar a barra dele, era de se pensar que o puto daria a conta por acertada. Pelo jeito não, e nem perto. Grilo para num posto de alfândega, na entrada da cidade. Descemos e ele conversa com um fiscal barrigudo, falando do horário em que os carros vão passar por aqui à noite, carregados. São oito. E devem seguir viagem intocados. Cumprimentam-se. O fiscal me olha. “Bem-vindo de volta, xerife”, ele diz.

A chegada: uma choradeira. Margô tá na cozinha, atabalhoada com as travessas e panelas, então chega por último, e me abraça por sobre nossos oito filhos, nenhum abaixo da minha cintura, nem o Marco, que era um bebê quando fui preso. Óri, o mais velho, tá do meu tamanho, a voz mais grossa que a minha. Ela me abraça, não me beija, só deixa minha cabeça repousar na curva entre ombro e cabeça e aspiro cheiro de xampu misturado com o da pele dela. Carne ensopada com purê de mandioquinha, é tão óbvia a vontade de me agradar que chega a doer. Uma chuveirada, as roupas antigas recém-lavadas nas gavetas, nossa cama macia forrada. Desço e sentamos na mesa e me contam as novidades, só um pouco, que são muitas, e o entusiasmo não deixa se fazer presente a realização de que essas crianças me desconhecem e Margô, entre distância e saudade, é paisagem carente de redescoberta.

O futuro: dá mostras de ser bem mais modesto que os dias lá dentro me fizeram sonhar. Burro de carga mesmo, lado a lado com o Grilo e o resto, mas sem metade da confiança que ele tem. Meu irmão aparece depois de dias, diz estar feliz de me ver. Mas é uma felicidade sem sorriso, sem intimidade, sem o soquinho no ombro. Se é pras coisas voltarem ao que eram, vai demorar. Não tem muito que eu possa fazer. Não tem muito que um ex-xerife ex-presidiário pode descolar de emprego, e não tem muita aventura possível com uma família assim grande pra sustentar. Quero dizer a ele que sinto muito, que não era minha intenção tomar o seu lugar quando as coisas deram errado. Mas ele sabe que foi. E eu sei que é só por uma espécie de pena e ligação fraterna que ele não me deixou morrer lá dentro, ou agora, aqui fora, não me mandou pra longe.

Meu irmão: é o que sempre disseram. Bondoso demais pra liderar. Mas o puto tá aí, há décadas. E é de se esperar que o tempo já tenha convencido seus homens, pelo menos, a não pisarem na bola. Por isso a surpresa quando o Grilo, o próprio Grilo, vem me propor algo nas linhas do que propus a homens de calibre muito maior há cinco anos. Ele se surpreende, mas meu irmão nem um pouco, quando chego com a carcaça balbuciante do Grilo no seu escritório e explico o que ele e mais uns outros tinham em mente. O Grilo confessa antes de levar um tiro na cara. Meu irmão não fala nada, nem agradece, só me dispensa. Eu não espero nada em troca, não por isso.

A insônia: incrível como uma temporada no inferno muda as perspectivas do cidadão, penso, deitado na cama, olhando o teto, uma mancha de bolor enorme tomando aos poucos conta da casa.

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Arte da vitrine por Jean Fhilippe

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