
Edvard Munch, 1907
o trem finalmente atingiu uma velocidade constante. ao meu lado conversavam duas mulheres
numa língua que eu
não conheço. parecia sério
pelos gestos, um assunto inesgotável, na mesa de apoio repousava uma
flor.
a rosa
estava tão exatamente no centro das duas que eu não saberia
dizer de quem era, tampouco percebi o momento em que a flor apareceu, se saiu de algum bolso, perdi como sempre
o começo das coisas
notei apenas a permanência
da rosa
quase morta e ainda muito
bonita
daquele jeito que só as flores sabem morrer.
pensei no porteiro
do meu prédio, o Geraldo. a gente
se conhece há tanto tempo, eu
tinha quinze anos quando me mudei pra lá.
e então um pouco antes
de eu embarcar nessa
viagem de trem, quando eu estava saindo do prédio com mala e passaporte, o Geraldo me contou que foi
demitido.
-como assim? –perguntei estarrecida
prevendo meu
choro, malas e casacos na mão.
– eu não queria ter te contado isso agora, não quero
estragar
a sua viagem. mas seria pior
se você voltasse e
não me visse mais por aqui sem saber porquê.
dei razão a ele.
claro,
ele tinha razão. mas
como isso aconteceu? o Geraldo é tão querido. no natal as pessoas levam frango pra ele. vinho.
-o condomínio aumentaria se os moradores quisessem me manter. agora eles vão terceirizar tudo.
-não acredito. – lágrimas deslizavam
pelo meu rosto
exatamente como essa vista pela janela
com árvores que me parecem
melancólicas
só porque por dentro eu estou me sentindo assim.
-mas eu vou ficar bem. – o Geraldo disse me consolando,
era eu quem devia estar fazendo isso.
nos Abraçamos.
a memória do nosso abraço
ainda está comigo
ainda deixa
meu corpo quente.
o trem avisou em painéis o nome da próxima estação.
as duas mulheres se levantaram.
afastei as pernas
para que elas passassem,
me ocorreu que talvez fossem irmãs.
pegaram as malas
no alto dos bancos, as sacolas também (e a flor?) ainda conversando mas agora com menos
volume ou era eu? que estava amortecida
o trem foi parando.
a porta
abriu (vocês estão esquecendo da rosa).
elas desceram na última
vez que nos vimos e isso
me tirou
alguma coisa, me fez perder brevemente o eixo por me lembrar que somos finitos, todos, que temos um tempo na terra que passa sem ninguém ter muito tempo para lamentar o fim de um ciclo, essas renovações constantes
de pessoas
em prol da nossa vagarosa evolução.
mas e a flor?
a pobre flor
quase morta e muito linda
bem aqui
na minha frente, não, não era delas,
a rosa não é de ninguém.
o trem voltou a se locomover.
qual?
é a história dessa rosa
pra merecer essa morte esquecida em cima da mesa
é total
o abandono de uma
planta
já que ela não pode, não
consegue
se mover. o Geraldo também não
na portaria por horas
mas isso acabou, agora ele vai tocar a vida de outro jeito, vai fazer um curso
de inglês, me disse, e quando eu voltar para casa um desconhecido
abrirá
o meu portão, penso, como se o sujeito valesse menos
só porque Eu não o conheço.
★★★★★★
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★★★
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