Marcelo Flecha: O teatro como mediador

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O teatro não precisa de mediação. Ele é o mediador do humano com o mundo. Ele faz a mediação entre o espectador e o incompreensível universo que o entorna. É dele a responsabilidade de traduzir o ininteligível, de apresentar o espanto, de aflorar o entendimento. Se passarmos a construir cênicas que exijam a mediação de um programa, de um curador, de um crítico, de um debate, o que sobra para um reles mortal como eu, um humano que busca a mediação do teatro para tentar entender um mundo incompreensível? Como sobreviver sem a mediação do teatro para processar um mundo de radicalismos, fobias, racismos e arbitrariedades? O teatro precisa preservar seu poder de mediação, conduzir o acordo para a necessidade da diversidade.  O teatro precisa manter o atilamento que lhe é peculiar na árdua tarefa de desvendar o humano ser; esse lugar de conflitos, exageros, extremismos, abusos, intolerância e medo. Colocar o teatro em um lugar de expectativa, em um lugar de passividade, em um lugar de espera pela mediação para a sua fruição, é aniquilar sua principal característica, a presencialidade, o tête-à-tête com o espectador; a tradução eficaz do que o sujeito vê e o que o visto esconde. O teatro não muda o mundo; muda a leitura de mundo do espectador, e isso não pode acontecer se a relação entre o teatro e o espectador exige uma mediação.

Digo isto porque estamos em Alta Floresta, no Mato Grosso, lugar de humanos que vão ao teatro na busca de entender a humanidade. Durante os debates ao fim das três apresentações de Velhos caem do céu como canivetes – e nos mais de duzentos debates que fizemos nos últimos anos –, pude perceber isso com larga clareza. Os comentários, as reflexões, os apontamentos, tudo o que ouvimos reforça o poder de mediação que o teatro tem, a valia de ser o instrumento que favorece a compreensão das faltas, das falhas, das navalhas que cortam um país desgovernado. Se atravessarmos, obrigatoriamente, um intruso na compreensão do espectador, ele se sujeitará à opressão do conhecimento como instrumento de poder, subtraindo sua liberdade de escolhas, percepções, leituras, bricolagens.

Percebam que meu argumento vai contra a “obrigatoriedade” do mediador; põe o acento nas obras que exigem uma mediação. Então, por que e para que fazer um teatro que exija, necessariamente, ser mediado? Por que extrair do teatro seu discurso direto, que por si só, já é metafórico, poético, complexo? O que ganhamos complicando radicalmente o diálogo com o espectador? E pergunto isso desde um lugar de criação, em um grupo que tem por peculiaridade provocar a reflexão do público através de montagens complexas. Contudo, me preocuparia saber que nossos espetáculos exigem a explicação, a tradução, a mediação de outro instrumento que não a própria fruição da apresentação. Penso que esses instrumentos devem ser disponibilizados, favorecem a interlocução, mas a obra não pode ser hermética ao ponto desses mecanismos serem indispensáveis para o acesso, como já acontece em diversas experiências nas artes visuais. O que se ganha com isso? Sei o que perdemos. Quando vou ver uma peça que obriga uma mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como espectador. Eu não preciso que ninguém me explique a obra. Eu quero errar à vontade, quero descobrir, quero brincar de entender; mas a obra precisa me dar esses caminhos, a obra precisa operar os códigos de linguagem que me permitam o acesso às camadas mais profundas, a obra precisa me dar as pistas para o meu trôpego caminho, não o mediador. Depois, o resultado disso se opera na minha cabeça das formas mais diversas, não necessariamente como o artista imagina, e muito menos como o mediador sugere. Digo, o quão complexa precisa ser uma peça de teatro para que o espectador não tenha condições de acessá-la sem uma mediação? Por quê? Para quê? Para quem?

Velhos caem do céu como canivetes tangencia esse tema, e circular pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura não deixa de ser uma oportunidade de fazer reverberar essas perguntas, e provocar as respostas. Estamos só no início da nossa jornada, e hoje partiremos para Primavera do Leste/MT, que receberá nossa oficina, outro intercâmbio, mais três apresentações e seus respectivos debates. Momentos do fórum permanente de reflexão que propomos para os nossos consortes de jornada e para você que acompanha a experiência, e as elucubrações provenientes desta. Qual será a próxima?

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MARCELO FLECHA

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