Edmar Neves: A poética do cotidiano em ‘Reza de Mãe’, de Allan da Rosa

 

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Sabe aquele drama familiar que se desenrola enquanto a moça volta do trampo, sacolejando no busão? Aquela aventura fantástica que o moleque vive em um dia soltando pipa? Ou a história de terror que a menina viveu ao ser zoada na escola, por causa de seu cabelo? Ou ainda, o épico que narra a ascensão e a queda de heróis mitológicos do futebol de fim de semana? Sabe esses pequenos contos cotidianos que fazem parte do dia a dia da periferia? Então, disso tudo o escritor, agitador cultural, historiador e educador Allan da Rosa sabe muito bem e são esses os temas que seu livro de estréia no gênero de contos, Reza de Mãe (Editora Nós, 2016), aborda.

Nascido em São Paulo, no ano de 1976, o autor cresceu em Americanópolis, bairro periférico da zona sul de São Paulo e integra o movimento conhecido como Literatura Periférica de São Paulo, vivenciando o que o grande poeta e agitador cultural Sérgio Vaz diz ser ‘a nossa Primavera de Praga e a nossa Tropicália’, afinal, desde o fim dos anos 80 e início dos anos 90, as pessoas das periferias do Brasil conseguem se organizar politicamente e culturalmente, assumindo o trabalho que o Estado não quer fazer e ocupando os mais diversos espaços, como bares, praças, pontes e vielas, em um processo de reconquista artística da dança, da música, das artes plásticas (grafite/pixo), da literatura e da cultura no geral, ao melhor estilo ‘noiz por noiz’.

Tratando mais especificamente da literatura, Allan da Rosa conquistou um espaço no não mais tão seleto/elitista grupo de escritores de nossa contemporaneidade, transcrevendo em prosa e verso a vida da maior parte da população brasileira, com uma perspectiva que até pouco tempo atrás era totalmente desconhecida, a perspectiva de quem nasceu e viveu na periferia, ou seja, temos agora na literatura o ‘olhar de dentro’, que pode registrar nuances que um ‘olhar de fora’ ignoraria por descuido, ou por mera arrogância mesmo.

Agora quem mancha as páginas dos livros com tinta é o sujeito periférico, sendo que, no caso do Reza de Mãe, as escolhas editoriais nos livraram do velho leite com café das páginas brancas com letras negras, afinal, não dá mais para  ser café-com-leite na literatura, é a vida real na ficção que está em jogo. Não entendeu? Ok, eu explico. Ao abrir o livro Reza de Mãe, o leitor é surpreendido com o texto escrito em um vermelho vivo, tão vivo quanto a rotina dos bairros periféricos, o suor dos que se matam de trabalhar para viver ou o sangue que escorre pelas valetas, pelas páginas do jornal, ou pela tela da TV, quando o ‘olhar de fora’ retrata à sua maneira  os mesmos sujeitos que Allan da Rosa aborda em sua obra.

Para exemplificar o quão enriquecedor esse ‘olhar de dentro’ é para a arte no geral, vou fugir um pouco do nosso tema principal, trazendo uma anedota sobre a música Admirável Gado Novo (A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, Epic/CBS, 1979), de Zé Ramalho. Quando menino, o cantautor, além de ter um intenso contato com várias expressões artístico-culturais, vivenciou a rotina nas fazendas da região onde cresceu. Prestando atenção na lida com o gado, ele percebeu que os vaqueiros e os aboiadeiros sempre usavam expressões como ‘ô vaquinha mansa’, ‘ô mansinho vai’ e ‘ê ô vida de gado’. No momento de compor a música que se tornaria um clássico instantâneo, Zé Ramalho buscou nessas expressões populares a sua fonte de inspiração, ressignificando-as e criando uma metáfora entre a lida com o gado e a vida do povo brasileiro e gerando, assim, um dos refrões mais marcantes da música brasileira.

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Allan da Rosa

De maneira parecida, Allan da Rosa também ressignifica e até mesmo subverte o cotidiano periférico do qual ele faz parte, já que com sua palavrapoesia o autor traz o lirismo tão necessário para contar as histórias do povo. Em verdade, essa poética do cotidiano que o autor traz em sua obra serve como uma poderosa lupa que amplia os detalhes que passariam despercebidos por outros olhares menos sensíveis.

No primeiro conto do livro Reza de Mãe, Pode Ligar o Chuveiro?, por exemplo, a poderosa lupa amplia um complexo emaranhado de relações familiares, narrando as peripécias que os moradores de muitas periferias precisam fazer para conseguir água quente para seu merecido banho. Nesse conto vemos as dores e delicias da vida dessas pessoas e somos apresentados a uma discussão sobre urbanização, sobre a relação das pessoas com as suas casas, fruto de anos de trabalho árduo, que vão crescendo a medida que surge a necessidade por mais espaço, devido ao aumento da família.

Essa lupa que maximiza o cotidiano também amplia a nossa visão sobre o passado, recontando no conto Costas Lanhadas a história que a escola não quis nos contar. A história das violências que o povo escravizado sofreu no cativeiro, um povo místico e batalhador que teve que aprender a sobreviver de várias maneiras numa terra estranha e distante de sua pátria mãe.

Quando a lupa passa pelo conto O Iludido, vemos que a luta pela sobrevivência continua ainda hoje, sendo que a violência é protagonizada pelos capitães do mato e carrascos modernos, a polícia. Coisa que o cidadão de bem não está acostumado a ver, pois nem o Datena, nem o Jornal Nacional gostam de mostrar esse lado da realidade. Afinal, só quando a violência é protagonizada pelo bandido preto, bom e morto é que a audiência sobe e o dinheiro da publicidade entra. O assassinato da vereadora Marielle pode até ter entrado debaixo dos holofotes recentemente. Crime político bravo esse. Mas logo abafa. Tem pé quebrado de Neymar, tatuagem dos casais famosos, dramas da novela, espetacularização da política brasileira e BBB para anestesiar nossa percepção da realidade e direcionar a nossa indignação. Cultura e hora certa para você.

O conto que dá nome ao livro – Reza de Mãe – parece se ligar ao conto Três Cocorinhas, contando a história de milhões de mulheres guerreiras, que mesmo com todas as adversidades, continuam na luta para sustentarem suas famílias. De um lado temos uma mãe solteira que por trabalhar de sol a sol, mal consegue ver sua filha crescer, tendo que contar com a ajuda da sorte para que a menina não trilhe caminhos tortuosos, do outro temos a moça passando por todo tipo de humilhação para visitar seu companheiro no presídio.

Há também o conto Jogo da Velha, uma estória cantada em verso, estória com agá, como só os prosadores griots poderiam contar. Porque o Allan da Rosa além de ser escritor, agitador cultural, historiador e educador, também é um griot, que conta em verso a prosa do nosso passado, ensinando com rimas as lições que a vida ensina com pancadas, ou traduzindo na escrita a dor de um povo, porque é difícil explicar algumas coisas apenas com a fala.

E essa lupa utilizada pelo ‘olhar de dentro’ de Allan da Rosa nos chama a atenção para tantos outros detalhes que não teriam relevância para outros autores vindos da elite, como a batalha interna do angoleiro durante uma roda de capoeira, o escritor que tem que conciliar trabalho e família, o rapaz que ficou zureta e acabou internado em um hospício com a glória de deus, entre tantos outros.

Com o livro Reza de Mãe, de Allan da Rosa, vemos que nas quebradas do mundaréu persiste uma herança das misérias de um povo que foi renegado as margem da sociedade desde a falsa abolição, mas que também é transmitida de geração em geração a força para resistir em uma sociedade extremamente hostil. Temos, por fim, um relato de um povo que mesmo passando por diversas privações e sofrimentos, ainda consegue sonhar com uma vida melhor.

edmar neves

 

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