Em 1936, movido por uma preocupação diante da possível extinção das “pessoas que sabem narrar devidamente” (BENJAMIN, 1985, p. 197), Walter Benjamin escreve um ensaio que se tornaria referência central nos estudos sobre a categoria do narrador. Já nas primeiras décadas do século XX, o ensaísta alemão sublinhava os dois exercícios possíveis da arte de conduzir uma história: de um lado, o de transitar e viajar, como um “marinheiro comerciante” (Ibidem, p. 199), autêntico experimentador das próprias aventuras e que delas retira a essência de suas narrativas. De outro, o de permanecer e o de coletar, como um “camponês sedentário” (Ibidem), fixado num determinado espaço e altamente conectado com todas as vivências que contempla do seu local de observação.
Cinco décadas mais tarde, em 1986, num contexto completamente distinto, Silviano Santiago revisita o conhecido ensaio benajaminiano e propõe uma leitura dos contos de Edilberto Coutinho, sublinhando neles uma espécie de narrador que, ao contrário dos dois acima citados, parece notar (e anotar?) tudo à distância, quase que sugerindo uma espécie de neutralidade que logo se confirma como uma armadilha, afinal “nenhuma escrita é inocente” (SANTIAGO, 1989, p. 43). Na sua hipótese de análise, o crítico brasileiro pontua que “o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante” (Ibidem, p. 39). É claro que esta proposta constitui uma das artimanhas possíveis dentro das que a voz narrante dispõe para conduzir a trama. Claro está que a questão primordial, aqui, não reside no que narrar, mas no COMO narrar. Afinal, será realmente possível se manter distante daquilo que se narra, sem se sentir seduzido a participar minimamente da sua própria construção narrativa? Para tal engenho, muito acertadamente o crítico brasileiro propôs a denominação de “narrador pós-moderno”.

Felipe Franco Munhoz (foto de Helena Franco)
Pois bem, em outra circunstância, mais preocupado com a figura de quem conta e de quem cria este contador de histórias, Jean-Yves Tadié vai enfatizar as duas tendências do romance do século XX: “uma consiste em abalar as convenções objectivas da ficção para dar à voz do autor uma extensão proliferante; a outra, pelo contrário, abole essa fala para anunciar a morte do escritor e talvez da escrita” (TADIÉ, 1992, p. 11). Ou seja, na disposição do eminente teórico francês, vai-se da afirmação da voz autoral dentro do escopo narrativo a uma negação de sua presença, ou aquilo que ele próprio irá designar de “um imenso ruído a um silêncio quase completo” (Ibidem).
Ora, todas estas questões em torno da figura responsável pela condução dos fios da meada narrativa (e do seu criador, claro está) são trazidas à cena quando nos deparamos com o primeiro romance do jovem escritor brasileiro Felipe Franco Munhoz: Mentiras, sob a chancela da editora Nós (São Paulo, 2016). Ainda pouco conhecido, este autor em estréia faz parte de um rico elenco de novos talentos nas literaturas de língua portuguesa. Como em Portugal, o Brasil também vem oferecendo uma safra primorosa de autores nos mais diferentes gêneros e categorias: Aline Bei, Andréa Del Fuego, Carol Rodrigues, Jorge Ialanji Filholini e Natália Borges Polesso são alguns dos (muitos!) nomes que figuram nesta nova e premiada geração, a que Felipe Franco Munhoz também pertence, apesar do inexplicado e tumular silêncio da crítica especializada.
A princípio, ao abrir as páginas de Mentiras, a surpresa inicial surge logo nas primeiras linhas: se espera encontrar-se no texto uma apresentação costumeira de um narrador (demiurgo?) num parágrafo introdutório, o leitor percebe que se defronta com uma narrativa toda ela diferente deste modelo porque está toda ela calcada no discurso direto.
Exatamente. Sem aparentes intervenções de um condutor dos diálogos ou um perscrutador dos sentimentos alheios, que movem e impulsionam as vozes das personagens, todo o romance vai sendo tecido a partir de uma práxis única e singular deste autor – a aparente negação de uma presença narrante concreta, dominante e onisciente em favor de uma dinâmica mais ágil e (aparentemente, frisa-se já) descomprometida com a própria matéria narrada.
Do encontro fortuito num café, Felipe (alterego autoral?), o protagonista de Mentiras, encontra-se com Philip, espécie também de alterego duplamente especular: do protagonista e do autor, sem esquecer-se de que remete à figura de outro escritor, a do norte-americano Philip Roth, de quem Felipe Franco Munhoz já se declarou um leitor ávido e apaixonado.
Aliás, uma escrita apaixonada bem poderia ser uma expressão adequada para caracterizar a forma de composição do autor de Mentiras. Se o título já se apresenta marcante pela sua concisão e impacto, também não deixa de ser altamente sugestivo para convidar e seduzir o leitor a perseguir e descobrir que falácias são essas anunciadas no pórtico do romance e como elas se manifestam ao longo da efabulação.
Mas, para além de uma narrativa iniciada com um despretensioso diálogo, Mentiras vai tecendo uma rede de conexões intertextuais que vai desde a revisitação direta de Philip Roth, e ainda perpassa por Melville, Joyce, Faulkner, Hemingway, Adorno, Benjamin, Russell e Lobo Antunes, apenas para ficar entre os nomes que mais ressaltam ao longo dos diálogos das personagens. Trata-se de um elenco difuso e muito bem costurado ao longo da trama. Dos descompassos iniciais entre os dois protagonistas, que procuram se entender e trocar suas experiências, vai surgindo uma escrita muito próxima de uma performatividade dramática, não só pela presença do discurso direto, mas também porque o autor demarca, em alguns momentos, o posicionamento polifônico das personagens, ao separar, como num texto destinado ao teatro, as falas de “Ele” e “Ela”. E também porque faz questão de enfatizar os momentos mais descontraídos, valendo-se de pequenas e nada gratuitas rubricas: “[risos]”. E o leitor começa a se interrogar: de quem? De Felipe, de Philip ou de Felipe Castro Munhoz? Dos três ou do próprio leitor, seduzido que foi pela artimanha tecida por este contador de histórias?
Na verdade, gosto de pensar que Mentiras encena uma grande viagem metatextual, onde os meandros da construção ficcional vão sendo paulatinamente descortinados para o leitor. Romance sobre o romance, este primeiro título de Felipe Franco Munhoz reinventa a própria maneira de se construir uma narrativa e de destecer o fio da meada.
Sem querer denominar rigorosamente esta grande aventura de escrita de estréia de Felipe Franco Munhoz como a de um “narrador pós-moderno”, não deixo de me sentir seduzido a compreender esta poética do diálogo, estabelecida e consolidada no bordado de Mentiras, como um exercício de criação literária muito próximo daquele sugerido por Silviano Santiago. Afinal, neste romance, também o seu narrador não está a olhar “o outro para leva-lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua experiência” (SANTIAGO, 1992, p. 43)? Não será essa disposição dinâmica e inusitada uma forma de perceber que o narrador de Mentiras, “ao dar fala ao outro, acaba também por dar fala a si, só que de maneira indireta” (Ibidem)?
Parece mesmo ser esta a armadilha salutarmente muito bem urdida ao longo da efabulação do romance de Felipe Franco Munhoz. E sem querer roubar o prazer ao leitor, fazendo uma espécie de spoiler, mas suscitando a curiosidade para quem ainda não teve a oportunidade da leitura, deixo uma breve passagem dos momentos finais do romance:
– Metáforas? Truques?
– É. Aos poucos ele preparou a tela, construiu este amplo cenário: a alma em alvoroço de um homem, suporte para as linhas de um rosto. Se esse homem é Felipe, o Felipe de fora da literatura, não sei dizer. Afinal, só pude conhece-lo como ele quis apresentar-se para mim. E, certamente, apresentou-se de outra forma para você; e, certamente, apresenta-se de infinitas formas para quem o lê.
– Infinitas? Ler?
– E os personagens, nós quatro.
– Quatro?
– Somos apenas um, percebe? Cada qual com peculiaridades, diossincrasias, mas com palavras da mesma forja. Ao final, o objective correlative de T. S. Eliot, formando uma única emoção, particular, através de cento e sessenta e dois diálogos: uma grande metáfora (MUNHOZ, 2016, p. 200).
Confesso que imaginava que a última expressão do diálogo acima seria “uma grande mentira”, ficando, assim, em consonância com a pluralidade anunciada no título: Mentiras. Mas, preferiu o autor subverter a lógica esperada e conduzir o leitor para uma interrogação fulcral. No limiar desta aventura metatextual, quem é que narra afinal? A resposta, é claro, não me compete revelar, mas apenas reiterar o meu convite de leitura deste romance singular de Felipe Franco Munhoz.
A tempo: acabo de saber do lançamento, na 2ª quinzena de maio, do seu mais recente trabalho: Identidades (São Paulo: Nós, 2018). Torço para que, ao contrário do silêncio absoluto dado a Mentiras, este novo romance desperte novas inquietações e chame a atenção dos olhares críticos, até porque experiências novas e bem conseguidas podem renovar a esperança de que a literatura, em pleno século XXI, ainda está muito longe de ganhar o seu atestado de óbito. Bem haja!
São Carlos, 05 de maio de 2018.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Wlater. “O narrador. Considerações sobre a obra d eNikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
MUNHOZ, Felipe Franco. Mentiras. São Paulo: Nós, 2016.
SANTIAGO, SILVIANO. “O narrador pós-moderno”. In: _______. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
TADIÉ, Jean-Yves. O romance no século XX. Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
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