
Arte de Felix Vallotton
enfrentamos uma escada em caracol antes de chegar no apartamento.
subi olhando pra cima, me apoiando no corrimão, o teto cada vez mais próximo. me lembrei de repente da caixa
que encontrei na casa da minha mãe cheia de
recortes de revistas e alguns desenhos que ela fazia, eu tratava aquilo como um tesouro, pequeno tesouro de quem foi a minha mãe. de resto uma cama, um sofá. e meus livros, depois de um tempo vou comprar um tapete.
-caso eu goste desse apartamento, espero que o elevador não esteja quebrado no dia da mudança.
-duvido. o zelador disse que demos azar.
chegamos no décimo segundo piso finalmente
-deu pra cansar? – o Júlio me perguntou colocando a chave na fechadura
-parece um corredor de hotel – comentei, e a porta abriu nesse instante
fazia sol dentro da sala.
-a planta desse apartamento é especial. – o Júlio me disse.
fui entrando, logo eu que nunca soube com qual rosto se entra num lugar que te agrada muito.
olhei a cozinha
de azulejos azuis
e um quadro
do Bergman.
-deixaram aí. – o Júlio explicou.
deslizei os dedos pelo quadro, um presente, me sentia como se eu não merecesse tanto.
visitei os três quartos.
um vai ser escritório, pensei. o Júlio acompanhava meus passos sem dizer quase nada
sabia que eu era do tipo que decidia de dentro, nunca por questões externas que os corretores tanto gostavam de listar. o Júlio me parecia diferente,
sensível
o olhei com carinho
ele me sorriu.
passeei também pelos banheiros, box, vaso, pia e
era como se eu não estivesse ali. queria tirar aquele amortecimento do corpo,
me sentir inteira no agora, mas
era impossível, eu estava feliz demais.
fui até a janela da sala.
apoiei no parapeito admirando a vista, me imaginei tomando um café ali todos os dias pela manhã
e fechei um pouco os olhos.
que música tocaria? a primeira música da história dessa casa comigo morando nela. girl from the north country? horses? anunciação.
-assim do alto até que são paulo tem seu charme. – eu disse.
-amo essa cidade.
-você nasceu aqui?
-sim. no bairro do limão. e você?
-sou do interior.
-quando se vem de uma cidade pequena é mais difícil se acostumar mesmo.
–não tem a ver com a cidade, Júlio.
-com o que, então?
-comigo.
acendi um cigarro.
-você se importa? – perguntei.
-não, fique a vontade.
-quer um?
ele demorou pra responder.
-você nunca fumou?
–não.
-então experimenta. – eu disse estendendo o maço.
ele tossiu
na primeira tragada
depois fumou como se tivesse feito isso a vida toda.
–você leva jeito.
-não é pra tanto.
–a primeira vez que fumei foi horrível, eu não conseguia tragar. fumava só colocando o cigarro na boca e soltando a fumaça.
-e você pensa que eu tô fazendo o que?
rimos.
-eu fazia questão de fumar na frente do colégio, queria provar pra todo mundo que eu era livre.
-deu certo?
-tomei uma suspensão de 7 dias.
ventava. olhei no relógio, 4 da tarde. eu gostava muito desse horário das 4.
-vou ficar com o apartamento, Júlio.
-eu sei.
só não me lembro quem
começou o beijo
mas pensando agora friamente
só pode ter sido eu.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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