Santiago Santos: Dos segundos que precedem

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Estou sentada diante de uma plateia apreensiva. Eles mascam chiclete, coçam o nariz, piscam, checam o celular. Alguns sentados direito, outros jogados no espaço possível entre as cadeiras vizinhas, o desconforto verificado no ângulo torto das espinhas contra as fôrmas de plástico. Observo esses rostos nos minutos que antecedem minha fala. Os que olham fixo pro anfitrião, que olham pra baixo, pra cima, que conversam. Nunca os que cruzam olhar comigo, cientes, atentos. Esses rostos desatentos sempre foram um trabalho de campo: o que devem pensar, dadas suas histórias e convergências e infinitas diferenças com minha própria vida, o que comem e bebem e como dormem e fodem, quem foram seus pais e sua educação e quantas vezes encheram a cara ou choraram vendo um filme, tudo evoluindo até um ponto exato no tempo e no espaço, aqui, nesse auditório, com todo o repertório de suspeitas e expectativas moldando as expressões que se alteram pra lidar com o ambiente. Uma boa escritora é uma boa observadora do comportamento humano. Claro que também das coisas, das quinas dos prédios e dos sons da cidade e da natureza que se transformam em metáforas ou vislumbres que não ocorreriam a um observador desatento. Mas em especial do comportamento humano. Acho que deveria abrir assim minha fala hoje, apesar do texto todo rabiscado no Uber vindo pra cá, pra faculdade, redigido ontem durante uma caixinha de Heinekens, minha fala pra essa plateia. Eu não domino o tema, como suspeito que nenhuma artista que encare sua arte de forma prática, sem atenção teórica ou estudo formal ou qualquer tipo de investigação profunda a respeito do como fazer, ao invés do fazer em si, possa dizer que domina. A mente, a minha, pelo menos, não parece condicionada a analisar os motivos, muito menos traduzi-los de forma didática e ordenada, e sim a mergulhar conforme as vontades que nascem também de um lugar abstrato que pouco se preocupa em se traduzir. Isso talvez explique o sentimento de farsa que me pinica mais que a maldita gola dessa blusa, merda, engordei ou essa porcaria encolheu, quanto dinheiro já torrei em roupa esse ano. Dinheiro. Explica porque estou aqui. Acho que a pessoa que não se sente um pouco farsa não bate bem, ou é alguém que se engana fácil, péssima qualidade prum artista, já que implica a impossibilidade de se avaliar o próprio trabalho de maneira madura. Ainda assim, o auto-engano é a ferramenta mais poderosa da consciência humana. Foda-se a autoestima. O auto-engano implanta uma autoestima ilusória pra determinada situação, se for o caso. Então meu auto-engano é ativado. Bem na hora. Eles batem palma, seguindo a apresentação entusiástica do meu currículo, resumido numas publicações, um cargo editorial numa celebrada editora já falida, o diploma que nunca usei, o coletivo que cogito abandonar faz tempo, essas coisas listáveis incapazes de definir qualquer um. E aí me levanto, a gola pinicando ainda mais, desgraça, cumprimento o anfitrião, e diante do microfone pigarreio e digo boa noite. Um início razoável, convenhamos.

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Arte da vitrine por Jean Fhilippe

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