
Obra de Wassily Kandinsky
a certa altura o museu desembocava em uma biblioteca de 6 andares
que estava desativada, víamos de cima, suspensos por uma espécie de andaime.
-não sabia
que tinha biblioteca aqui, não está
no folder. – o Otávio disse.
-deve ser uma atração surpresa.
fiquei impressionada
com a quantidade de livros até o teto ao redor de tudo.
tentei aproximar a vista de uma das prateleiras
pra identificar algum título, o que teria? Sócrates, Platão, mas
era impossível
o terraço móvel aonde estávamos ficava bem afastado das paredes
será que alguém já tocou naquele último livro ali de cima?
no térreo mesas comunitárias
levemente parecidas com as da biblioteca da minha cidade
ao nosso lado um guia
explicando em inglês para um grupo
a história por trás desse lugar. ele disse que na década de 20
uma menina
acompanhada pelos pais no último piso
de repente se jogou
biblioteca abaixo
foi muito rápido, ninguém conseguiu segurar. até hoje não se sabe a causa desse impulso, se
por curiosidade, se
um acidente, será que a menina tinha alguma dimensão do que estava fazendo?
na época a biblioteca tentou abafar o caso
mas os boatos correram solto
e as pessoas começaram a achar que os livros daqui eram amaldiçoados, cada vez menos gente visitando os pisos até que tudo ficou pras moscas.
-quantos anos a menina tinha? – uma mulher do grupo perguntou.
-14.
e eu me lembrei de um taxista, seu Antônio,
que peguei um dia em belo horizonte rumo a ouro preto, ou seja, uma viagem longa, deu tempo
pra conversarmos bastante
e conforme o papo foi se aprofundando
a estrada também, se aprofundando
o seu Antônio me contou que a filha de 14 anos
se matou.
pulou da janela
em pleno domingo
quando os pais abriram a porta do quarto
pra chamar a menina
pro almoço
não tinha mais ninguém lá.
ela deixou uma carta, a mãe não teve coragem de ler.
-e você, leu?
-li.
-o que dizia? se não for muito ruim perguntar.
–ah, falava sobre o quanto ela se sentia sozinha
mesmo rodeada por pessoas, sobre o quanto esse mundo era cruel com ela e
não a acolhia
nesse ponto seu Antônio parou.
-vamos falar sobre outra coisa. – sugeri.
então ele me contou que se casou de novo
depois da morte da filha não teve como não se separar da primeira esposa.
–ficou uma distância enorme, a gente não conseguia mais se olhar.
era como se fossemos culpados
o espirito da nossa filha sempre entre nós.
-e como você conheceu a sua segunda esposa? – desviei, não queria fazer seu Antônio chorar.
-no táxi.
-vamos? – o Otávio me disse, estendendo a mão. – o museu fecha às cinco e a gente não viu nem metade.
-vamos. – eu disse aceitando
o encontro dos nossos dedos
não sem antes dar uma última olhada
agora pro chão
da biblioteca
tentando adivinhar o lugar exato em que a menina
implodiu, como dizem que acontece
com um corpo que despenca.
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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