
Arte de Giorgio de Chirico
o escritório do meu pai era todo de vidro
e tinha um rio
que mais tarde descobri ser uma espécie de aquário aberto
no chão
mas quando menina eu imaginava que a água tinha brotado ali, simplesmente, apesar das mesas e dos papéis.
quem me buscava na escola era a secretária bibi
almoçávamos juntas
de preferência no restaurante da
beterraba, a cor que meus dentes ficavam, depois ela
me levava pro escritório de vidro
meu pai estava lá.
ele me dava um beijo
e sumia
às vezes eu tirava um cochilo no sofá da recepção. se ficava frio a bibi me cobria com o seu lenço tão
cheiroso,
atchim.
de repente meu tio chegava
de moto
eu acordava instintiva.
ele entrava com jaqueta de couro
e anéis, largava o capacete num canto
dava oi
pra bibi e fazia
um Carinho no meu cabelo.
( aquilo )
me dava uma
energia tão
Grande
eu saia correndo
pelo escritório
cantado
e usando as mãos
pra voar, fingir que voava
aos poucos eu
ia me acalmando, mas
não era fácil
depois que meu tio chegava meu coração virava um bicho.
minha mãe
costumava me buscar no final da tarde
me achava cansada
por conta das minhas olheiras
mas eu estava feliz e contava isso
pra ela
mãe,
eu Tô feliz.
ela me olhava como se eu fosse uma criança bêbada
de sono
-amanhã você volta. – a bibi me dizia
tão calma
eu ia embora olhando pra trás.
se não fosse ela pra cuidar de mim
ou o meu tio
pra me deixar daquele jeito encontrando vida em tudo, nas prateleiras, nas paredes
então minha alegria era o rio.
-peixe não chora? – eu perguntava.
-tem gente que também não.
mas além dos peixes
tinha uma tartaruga no aquário, ela era do tipo que podia sair da água sem morrer. direto eu pegava ela no colo
quem dera eu pudesse fazer o mesmo com os peixes, apesar de achar que eu me assustaria
com a viscosidade deles
e soltaria rápida
peixe na água
imaginando minha mão virando molusco.
pois eu pegava
a tartaruguinha
ela ficava se debatendo
-não adianta fazer isso, eu sou maior que você.
ela se escondia no casco
-sai daí.
eu enfiava o dedo
nos buraquinhos dela
meu tio chegava de moto
dizendo deixa
a pobre em paz e
voltava a tartaruga pro rio. ela nadava
até o fundo mais impossível onde eu não pudesse alcançá-la e
isso me aborrecia
ao mesmo tempo que eu sentia muita vergonha por ter levado bronca justamente do meu tio. não sou idiota eu dizia ou tentava dizer
e ele vinha
com aquele Carinho
no meu cabelo
me deixando de novo cheia
de energia.
a única parte triste do escritório
era quando a minha tia chegava.
ela entrava de salto geralmente de sexta
e dava um beijo meu deus na boca
do meu tio.
depois ela vinha
me dar um beijo também
eu fugia pro sofá
me cobrindo toda
com o lenço
como se ali fosse
meu túmulo
eu me sentia feia quando ela chegava
feia, sozinha, doente, morrendo
sua puta, um dia eu tive coragem de dizer.
meu pai quando ouviu isso
me arrancou do sofá a tapa
me bateu na cara, na bunda
(a tia chorando, a bibi pedindo
chega)
mas o pior
não foi a surra
que eu só fui sentir horas depois amortecida como eu estava pela raiva
o pior de tudo mesmo
foi apanhar na frente do meu tio que ficou
imóvel
assistindo aquele circo como se fosse pouco.
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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