
Arte de Edgar Degas
o casal está na cama, as pernas sobrepostas, no criado mudo dele tem um livro, no dela um copo
-alguma coisa mudou em mim. – ela diz.
-o que?
-não sei, estou com mais coragem.
-mas aconteceu alguma coisa?
-foi depois do que você disse sobre o vestido, que estava com saudade de me ver com o vestido. fiquei uma semana pensando na sua frase e cheguei a conclusão de que
quando eu usava aquele vestido eu era muito mais aberta pra vida, fora que ainda ninguém que eu conhecia tinha morrido, quer dizer, só meus avós, mas era natural, eles estavam velhos, este tipo de morte dói menos e eu era alegre, lembra? estava tentando arrumar um emprego no spot.
-eu lembro.
-e usava aquele vestido azul. saía pra comer hambúrguer com ele, conseguia projetar minha vida pra daqui sei lá
10 anos e
sem medo, mas também muito tranquila com o que estava me acontecendo agora, comer o hambúrguer, tomar meu refrigerante, rir das suas piadas idiotas. quando você falou do vestido eu quis ser aquela mulher de novo,
eu sei que é irreversível, não dá pra simplesmente voltar a ser quem fui, mas. sei lá,
eu senti que ainda era possível encaixar um pouco daquele brilho em mim.
-linda.
-e sabe quando eu percebi tudo isso claramente? ontem na academia, quando do nada uma mulher começou a conversar comigo. ela chama Luciana, é farmacêutica, e ela me contou coisas muito íntimas, por exemplo que era assexuada.
-assexuada, sério?
-juro. e ela me contou isso assim
na bucha
eu podia não entender, né?, onde ela estava querendo chegar me contando essas coisas tão intimas, mas eu fui aberta e gentil como há muito eu não conseguia ser. marcamos de comer uma pizza na sexta, trocamos telefone. ela tinha um hálito esquisito.
-bafo?
-não, era um tipo de ar pesado como se a boca estivesse seca.
-humn.
-mas o fato é que antes ninguém conversava comigo naquela academia, lembra que eu reclamava? achava tudo um saco, mas
entende? bastou eu me abrir
ainda que sem querer
e as pessoas começaram a me contar segredos.
-e você está gostando.
-muito. obrigada por dizer do vestido.
-eu não fiz nada, amor.
ficaram abraçados, ela olhando pro teto pensando na Luciana uma pessoa nova e ele mergulhado
nos cabelos da esposa, os dois vestindo camisetas iguais.
-e o quadro, como está? – ela perguntou.
-tô com vontade de apagar tudo.
-para.
-riscar um fósforo naquela merda.
-isso é seu alter ego falando, mas o quadro está lindo, dá pra filmar uma história de terror ali naquela floresta, sabia? ou uma história de amor, dá pra fazer o que quiser naquelas árvores, você não pode queimar nada porque seu quadro já queima toda vez que a gente olha pra ele.
-você me superestima.
-eu te vejo, só isso.
ficaram em silêncio, os dois.
-você vai ler? – ela perguntou com a mão no clique do abajur.
-não, pode apagar. quero ficar aqui com você. – ele disse sorrindo na nuca dela, deu pra sentir os dentes.
se beijaram e
foi durando,
ele encaixou a mão por baixo da blusa dela o mesmo peito há onze anos e aquilo
ainda o surpreendia, o bico, os bicos, ele queria devorar os dois de uma vez. ela foi se esticando
como se voasse, pegou no pau movimento sobe e desce, os dedos dele mais circulares bem no clitóris e ela rebolando, ele montou
cavalo no campo num entra e sai frenético que no fundo era apenas vontade de permanecer.
olha pra mim, ele pediu
gozando e ela
nem perto disso (o gemido dele encheu o quarto) já tinha explicado pro marido que era bom mesmo sem gozo, ele sabia que sim e achava que sabia
quase tudo sobre a garota dos seus sonhos sem que isso anulasse qualquer mistério, ele queria pintar o dentro da esposa numa tela do tamanho de Guernica, era guerra também, talvez ele começasse amanhã ao invés daquela floresta estúpida e terá ciúme
se a tela for selecionada por alguma galeria.
-as pessoas vão se apaixonar por você – ele disse.
-não me superestime. – ela retrucou
naquele mesmo jogo só que agora invertido
e assim lentamente eles foram pegando no sono de mais um dia juntos, faltam quantos?, até que tudo acabe.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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