
René Magritte, 1963
-entra no carro.
-não.
-agora, renata.
-me solta.
-o que ele te fez, hein?
-nada.
-fala. – ele disse apertando a bochecha da menina.
entraram no carro,
ela estava chorando muito.
o pai disse bota o cinto e
antes de acelerar ficou olhando
pra filha, perdido
por completo.
em silêncio eles seguiram o caminho de casa
sempre as mesmas árvores mas hoje
estava difícil, tudo lembrava Lúcio, a Renata encostou a cabeça no vidro se deixando levar pelos movimentos do carro
queria se afastar do pai e fez isso
encostando o corpo na porta o máximo que deu.
as árvores.
que vontade de
ser uma delas, sumir
entre tantas, farol vermelho
um casal
atravessou na faixa
uma mulher de salto
atravessou na faixa
verde.
o pai acelerou, não gostava de ver a filha triste
tanto menino no bairro e ela foi se apaixonar logo por esse lúcio que
fumava o dia todo, queria
ser poeta
-ele É
poeta.
-poeta tem que estudar, esse menino é um vagabundo.
é claro que durante a juventude o pai também
deu seus pulos, mas
Passou, agora
só cerveja, de vez em quando um vinho do porto, mas era diferente, ele era um homem feito. estacionou na garagem
a menina desceu antes do carro frear.
-Ei. – disse o pai.
ela soltou a porta, subiu pro quarto
a mãe na cozinha virou o pescoço
-o que aconteceu? – perguntou pro marido
que entrou minutos depois afrouxando a gravata.
-brigou com o lúcio – ele cumprimentou a mulher com um selinho.
-de novo?
e deu um beijo também no filho que brincava na sala, a tv ligada no show do Patolino.
-eles terminaram? – a mãe quis saber.
-não faço ideia. – ele disse lavando a mão na pia com detergente.
-pega o alho pra mim? – a mulher pediu.
ele abriu a geladeira, pegou também uma cerveja.
-nesse frio?
-estou precisando. quer um pouco?
a mulher fez que não, o fogo ligado
o pai abriu a tampa pra sentir o cheiro
da carne
colocou a mesa, sentou.
-será que ela vai querer jantar?
-você não viu o que ela aprontou na frente do colégio.
-o que?
-ficou gritando, não queria entrar no carro de jeito nenhum.
-você não acha que seria melhor a gente arrumar um psicólogo pra ela?
-David, não.
o menino estava jogando bolinha de gude na tela da tv.
-talvez. – o pai continuou.
-vê com aquele teu amigo médico. pra igreja não adianta levar a renata, ela odeia.
-tava pensando em conversar com o pai do lúcio.
-tá louco?
-por que?
–aquele homem é um xucro, Carlos, pelo amor de deus. outro dia mesmo ele caiu aí na rua de tão bêbado, não acho
que você devia se expor assim.
-e tem jeito? esse namoro precisa acabar, Marcela, não dá, você reparou como a nossa filha tá magra?
a mãe sentou na mesa, eles se serviram.
-a carne está ótima.
-vou chamar a renata.– a mulher disse apoiando o talher.
-deixa ela se acalmar primeiro.
-a comida vai esfriar.
-depois ela esquenta.
-comida requentada é horrível.
a mãe levantou.
deu uma olhada no David que agora estava mais calmo e levantava as mãos
como se dançasse.
ela subiu os degraus.
com cuidado abriu a porta,
deu um berro quando viu o corpo da filha
nu, as pernas abertas, o lúcio com a boca mergulhada ali.
★★★★★★
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