Aline Bei: Carta pra mãe

 

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Arte de Nigel Van Wieck

 

não consigo mais te olhar

porque sinto nos seus olhos a loucura.

não encontro amor

nos seus olhos

encontro a sua infelicidade

sedenta por me fazer infeliz também, a sua infelicidade tentando se controlar

porque às vezes você tem um rompante de

ser uma boa pessoa, em público principalmente.

te escrevo essa carta com medo

de que você abra a porta do meu quarto

e destrua

as minha coisas, este computador, meus livros

dentro de você é tudo tão seco que

qualquer gesto, ainda que fosse da sua mãe morta, não te faria parar.

minhas coisas, eu disse.

como se eu tivesse algo nessa casa, nem espaço, nem comida

 

-tudo está a serviço da minha vontade. – você berra pra ninguém.

 

ligo pro pai, ele está na estrada.

 

não há

nada mais simbólico, dirigir pra longe é que o fazemos diariamente

 

ainda que parados te ouvindo dizer absurdos sobre nós como se você nos conhecesse, sinto medo

de engravidar e me perceber parecida

com você.

 

sua irmã me ligou,

depois da briga que vocês tiveram.

ela disse que só mesmo a gente aqui de casa para te aguentar.

 

não ana,

 

a gente também não aguenta

 

estamos mutilados, olhe pra nós, sangra cada parte do nosso corpo

mas é a guerra, entende? não temos

pra onde fugir.

 

te imagino velha, mãe, porque sei que você não vai morrer cedo.

 

sei

que você vai se arrastar ao longo de nossas vidas

 

porque esse é o seu destino, se arrastar pelos anos, você vai enterrar cada um de nós, as testemunhas, e para as pessoas que não te conhecem você contará histórias bonitas sobre o amor.

a loucura nos seus olhos, mãe.

estou cada vez mais sensível a ela

lembrando da sua violência, das suas roupas cortadas e sempre brancas: como em um manicômio,

quando eu era criança você me vestia assim e eu pensando em me enforcar, existir é triste, mas era a sua presença que contaminava o meu espírito, a sua presença

não a minha.

 

numa manhã em que você estava calma eu te disse que não desistiria de você.

 

ainda estou aqui,

 

mas sinto

 

que te

abandono lentamente

e não é algo que eu possa evitar.

 

você está me perdendo, mãe, você está perdendo seu bode

expiatório

 

te assisto

 

e não é raiva o que eu sinto, não é vontade de te matar.

 

eu olho pra você e te vejo, apenas, uma mulher de pele seca

e cabelos muito lisos.

 

até a minha tristeza

está de partida

 

para dar lugar a uma sensação de que preciso me proteger, de que a vida é muito maior do que você tem contado pra gente por esses anos

só para nos manter como cenário

do seu monólogo

como se todos os sentimentos do mundo só coubessem na sua mão.

 

aline bei

 

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