
Memory (The Heart), de 1937, por Frida Kahlo
separou as roupas
na cama, calça, camiseta
não sabia se daria tempo de ir à praia, em todo caso
decidiu levar um biquíni, encaixou na mala, a última coisa um livro
que estava lendo, contava a história
de um viúvo com filha adolescente.
começou a chover.
ela acendeu um cigarro, vício nascido também
na adolescência, uma tentativa de se destacar
entre tantos, não era bonita ou
inteligente, fumando
se sentia melhor como se entendesse
os lusíadas
não só o texto, a peça principalmente
e usava boina
e cerrava os olhos
enquanto soltava a fumaça.
pela janela do quarto a velha mangueira
ela morava na mesma casa desde os 7 anos
se lembrava pouco da vida antes disso
será que moraria
naquela casa pra sempre? raiz não lhe faltava, sentia dificuldade de se mover em direção ao seu destino, fazer escolhas, pensava demais e quando dava por si
já tinha escurecido.
pelo menos agora ela viajava a trabalho
depositavam dinheiro na sua conta
ela via
os números aumentando
e comprava um remédio
pagava o cinema
mas faltava algo, não na conta,
queria ser do tipo que vive como as águas
de um rio
mas ela era um sapato de sola solta
a natureza nunca seria uma boa metáfora para a sua existência, coisas materiais a representavam melhor. a mãe bateu na porta, foi entrando
já está tudo arrumado? perguntou e o tempo passando
por um instante ela imaginou como seria a vida depois que a mãe morresse.
Terrível, por um mês ou
dois, até que. se acostumaria
e funciona assim pra qualquer morte
dói mas a dor vai se transformando em perda de apetite, insônia
a vida continua, a priori pesadamente
devagar voltando
pro ritmo que tinha e de repente nos escapa
um sorriso, sentimos culpa
o fulano morreu, mas
estar vivo
é maior do que a morte você pegou escova de dente, shampoo
sim.
seu voo sai que horas?
oito e quarenta e cinco.
ela disse apagando
o cigarro
pegar avião com mal tempo não a assustava por conta do seu estado amortecido, raiz era seu forte uma ova, talvez
um voo baixo, voo de quem está aterrissando
mas no caso dela
o avião não pousava nunca.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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