Amanhã quero ser vento (2018, 11 Editora), primeiro romance de Michel Yakini, é um livro composto de vozes. Para além do que a crítica e a teoria já chamaram de romance ‘polifônico’, na esteira do que Bakhtin identifica nas produções de Dostoiévski, o livro de Yakini se compõe de pequenas narrativas que, mantendo sua relativa independência frente ao enredo do romance, com ele formam uma espécie de constelação, cujo desenho cabe ao leitor.
A história do romance é a de Manandi, mulher que busca caminhos para além de um casamento e de uma vida doméstica insatisfatórios. Seguindo os passos de sua tia Malvina, muda-se da pacata e provinciana Vila Distância para Segredo, a cidade grande que lhe permitiria a reconstrução da vida em outros moldes. Tal reconstrução vai da independência financeira a outras formas de amar: passa a viver com o salário de faxineira, e junta-se a Márcia, nova companheira, com a qual aprende a “decifrar os mapas do horizonte, o caminho das nascentes” (p. 54).
O movimento de desconstrução e reconstrução, aliás, parece compor boa parte da dinâmica do romance. Ou, talvez, não: se, à primeira vista, trata-se, para Manandi, de fazer terra arrasada de uma vida opressiva, construindo sobre novas bases uma relação consigo e com os outros, o que importa parece mais ser o percurso que a meta, o que a própria imagem do vento, sempre retomada, evoca.
Assim, as múltiplas vozes que compõem o romance parecem retomar o caráter indomável do vento e, literariamente falando, guiar a variedade de um enredo que teria tudo para parecer engessado, no sentido de uma fábula moralizante ou professoral. As histórias de Donanina, uma das personagens mais interessantes do romance, lembram as narrativas de Histórias de leves enganos e parecenças (2016), de Conceição Evaristo, nas quais a dita ordem natural das coisas é alterada por um modo particular de apreensão do mundo – como lembra a crítica Assunção Sousa e Silva sobre a obra –, modo este que remete a um narrar fundador de um reconhecimento ancestral, alheio à lógica ocidentalizante e colonialista: “faz espelho e identidade, dessenzalando a linguagem” (p. 119), como reflete o narrador.

Michel Yakini (Foto de Sonia Regina Bischain)
As pequenas histórias e as vozes que compõem o romance, desse modo, ganham individualidade, sugerindo a exploração dos limites do verbo e da cosmovisão para além do discurso do próprio narrador. São diferentes modos, formas, de compreender e narrar a experiência, da vivência periférica às frustrações do cotidiano, da sabedoria dos mais velhos à confissão de ignorância do narrador, o qual diz sobre a importância de “desaprender oito horas por dia” (p. 120), ou, então, que as “vozes falam quando bem entendem” (p. 15).Não à toa, um dos achados do livro é justamente o momento em que Manandi coloca em xeque o comando da narrativa, suspendendo o juízo sobre um destino ideal ou falsamente sólido: “não sou fantasia, nem sua nem de ninguém” (p. 110). A provisoriedade toma o lugar, portanto, de uma fixidez insatisfatória, troca na qual, se isenta de um alicerce, tem a vantagem de pairar sobre as diversas possibilidades que a vida, com suas agruras, parece frequentemente negar.
A estreia romanesca de Yakini é um verdadeiro desenvolvimento do mote que seu título propõe: o enredo, fundado nas diversas vozes e narrativas, sugere o caráter impalpável do percurso, cujas possibilidades de exploração se dão justamente a cada experiência, simultaneamente individuais e generalizáveis através da palavra. Amanhã quero ser vento é mostra de como a literatura periférica e afro-brasileira se consolida também na narrativa, com diversidade temática e sem negar suas fortes raízes poéticas, de já longo percurso nas letras nacionais.
★★★
Julio Bastoni é professor e pesquisador de Literatura Brasileira
Título: Amanhã quero ser vento
Autor: Michel Yakini
Capa: Brochura
Especificações: 136 p. 14×21 cm
ISBN: 978-85-69013-07-5
Assunto: Romance brasileiro
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