Campos de Carvalho: Existencialismo, guerra, morte e uma vaca de nariz sutil. Por Edmar Neves

40610431_1967361969987760_8732912008879407104_nCampos de Carvalho é daqueles escritores que causam inquietação em quem o lê. Indo além dos adjetivos que eu já enumerei em minha resenha de “A Lua Vem da Ásia” (Autêntica Editora, 2016), de que ele é verdadeiramente surrealista, desconcertante, irônico, nonsene, imoral e louco, algo que se sobressai na leitura de sua obra é a forma como o escritor consegue discutir a nossa existência. Suas personagens são seres que não conseguem se adequar a sociedade que os cerca, questionando a racionalidade de tudo que fazemos, chegando ao ponto de, ao finalizar o livro, o leitor também ser contaminado pelo vírus da contestação, passando a duvidar de sua própria condição humana.

E é a crise existencial um dos principais temas de seu 4º livro, “Vaca de Nariz Sutil” (Autêntica Editora, 2017). Na verdade é a morte, mas calma, daqui a pouco chegaremos lá. No enredo acompanhamos a estória ébria de um ex-combatente de guerra traumatizado, que passa seus dias entre bares, becos, cemitérios ou trancado em um quarto de pensão espionando seus vizinhos.

Nessa obra a comicidade absurda que marca o trabalho de Campos de Carvalho sai um pouco de foco, dando lugar a um grande amargor, mesmo que ainda haja críticas ácidas regadas a muita ironia, nos forçando a dar aquele pequeno sorriso amarelo, talvez por nos identificarmos com o que estamos lendo, mesmo que isso cause certo incômodo.

O jogo narrativo que temos em “Vaca de Nariz Sutil” nos leva em alguns momentos para as vivências do nosso ex-combatente na guerra, onde os fatos são apresentados de maneira um pouco mais vívidas e consistentes, assim entendemos que nossa personagem principal foi forçada a entrar nesse conflito pela família que não sabia lidar com seu jeito desajustado socialmente, além de nos convidar a refletir sobre toda a falta de sentido nos conflitos bélicos. Para coroar a irracionalidade dos fatos, ao ser dispensado do exército, nosso narrador recebe uma medalha de honra por seus atos heroicos durante a guerra, além de um diploma de esquizofrênico do médico da família, o que lhe garante uma pensão do Estado para pagar sua estadia na pensão em que vive.

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Campos de Carvalho (foto: Luciana Francesco/Divulgação)

Em seu período de pós-guerra, ou seja, no tempo presente da enunciação, vemos uma figura decadente, fragmentada e totalmente solitária, um sujeito que se coloca na condição de um observador incrédulo que assiste a futilidade das relações humanas, empreendendo, desta maneira, uma viagem existencial.

Na verdade, para além dessa viagem existencial, o signo da morte aparece em cada canto do romance, seja nas mortes que nossa personagem principal causa em sua atuação na guerra, no cemitério chamado Hotel Terminus, que aparece como um símbolo da obsessão do Campos de Carvalho por temas mórbidos, na morte que nos espreita em cada esquina, ou ainda, na condição de o nosso narrador ter a sensação de estar morto em vida.

Algo interessante sobre a escrita do livro é que, assim como ocorreu com “A Lua Vem da Ásia”, em “Vaca de Nariz Sutil” a primeira coisa que surgiu foi o título, sendo essa uma boa chave para interpretar o romance como um todo. Nos momentos finais da obra, o narrador nos revela que “Vaca de Nariz Sutil” é o título de um quadro do pintor francês Jean Dubuffet, confessando que desde os tempos de guerra, ele tem sido perseguido por vacas que o fitam enquanto pastam calmamente. Aqui somos remetidos a sua condição de observador, de voyeur na verdade, se deliciando dolorosamente ao assistir as perversões e contradições sociais através da fechadura da porta. Contudo, quando vemos o quadro de Dubuffet, o que nos salta aos olhos é a imagem do anormal, de uma figura que, mesmo sendo uma vaca, se diferencia do que estamos acostumados a ver. Dessa mesma maneira, a personagem do romance aparece como uma caricatura radicalizada do que somos, pois ele é um sujeito representado como uma figura grotesca, marginal e fora dos padrões socialmente estabelecidos, em uma tentativa de traduzir com mordacidade e ironia sua posição deslocada no mundo.

Quando lemos a obra de Campos de Carvalho enquanto um projeto literário, notamos que há uma série de temas que permeiam seus livros, sendo a inquietação, o mal estar de se viver em sociedade e a busca existencial seus elementos fundamentais. Em “A Lua vem da Ásia”, temos a loucura, em “Vaca de Nariz Sutil”, a morte e em seu romance seguinte, A Chuva Imóvel (Autêntica Editora, 2018), que pode ser considerada uma continuação de Vaca, assistimos ao fim do mundo sendo metaforizado na busca de sentido para a vida empreendida pela sua personagem principal, um sujeito chamado André.

Pode-se concluir que Campos de Carvalho traduz, em sua obra, as mazelas do sujeito contemporâneo que é aturdido pela fragmentação de sua personalidade, por seu desajuste social e por sua eterna busca de um sentido existencial. Realmente, há mais loucura nas ruas e dentro de nós, do que no hospício representado em “A Lua Vem da Ásia”.

Para se aprofundar mais na obra de Campos de Carvalho, sugiro que você leia a dissertação do João Felipe Gonzaga e o artigo do Diego Lock Farina.

 

edmar neves

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