Algo que me fascina nas artes em geral, são as possibilidades criativas que as diferentes linguagens podem oferecer, sendo que algumas obras só funcionam em uma determinada linguagem, ou seja, qualquer tentativa de adaptação para outras mídias não dá conta de reproduzir a totalidade de sentidos que o trabalho original possui. Esse foi o principal argumento que o Allan Moore usou para convencer o diretor Terry Gilliam a abandonar a primeira tentativa de adaptar a HQ “Watchmen” (Editora Panini, 2017) nos cinemas, já que, segundo o quadrinista, suas HQ’s são infilmáveis, afinal, sua intenção ao conceber uma história é que ela seja viável, formalmente falando, somente no gênero dos quadrinhos.
Outro bom exemplo de obra que é impossível de adaptar para outras linguagens é a belíssima HQ lançada recentemente no Brasil, “Um Pedaço de Madeira e Aço” (Editora Pipoca & Nanquim, 2018), de Christophe Chabouté. Para quem está acostumado a associar as historias em quadrinhos aos super-heróis, essa é uma obra totalmente fora do convencional.
Começando com um pequeno resumo, “Um Pedaço de Madeira e Aço” conta a história de um banco de praça e das pessoas que por ali passam diariamente, sendo que para essa empreitada, Chabouté se impôs o desafio de contar essas histórias mantendo o enquadramento no banco e não utilizando nenhum balão de fala (!).
E não pense que essa escolha formal faz com que o conteúdo seja apresentado de maneira simplista, afinal essa imposição da forma trouxe saídas interessantíssimas que exigem do leitor um pouco mais de calma, atenção e reflexão para absorver tudo o que está registrado nas 340 páginas da HQ.
Um dos temas centrais da obra é a heterogeneidade do cotidiano. Em uma leitura rasa, não vemos a representação de eventos extraordinários, não se tem uma figura pública notável, ou um fato histórico que muda os rumos da humanidade. Há apenas pessoas anônimas, vivendo suas rotinas, ou aproveitando suas pequenas pausas para sentar, ler um livro, conversar ou simplesmente observar a paisagem.
Mas o que poderia ser um retrato do banal, ganha outras dimensões com Chabouté, pois ele ressignifica as experiências do cotidiano, tirando-nos do conforto de nossa rotina ao nos apresentar as situações habituais que vivenciamos, mas de um modo que expande nossos sentidos em relação ao mundo, ativando nossas faculdades emocionais e se tornando, dessa maneira, uma experiência estética extremamente interessante e transformadora.
Assim, queremos saber o que aconteceu com o menino que cortou do dedo nas primeiras páginas da HQ, acompanhamos a rotina do cara que faz manutenção na praça, observamos as idas e vindas das pessoas rumo ao trabalho, nos emocionamos com um casal de velhinhos compartilhando seus momentos juntos, nos divertimos com encontros entre amigos, nos impressionamos com as pequenas coincidências diárias, torcemos para o tiozinho com o buquê de flores encontrar um par amoroso, assistimos a uma parceria musical inusitada, sentimos a solidão do banco da praça na temporada de inverno, nos amarguramos com a vida de um morador de rua, vemos florescer uma amizade entre dois sujeitos que se viam como antagonistas e preenchemos os silêncios que a falta de balões proporciona, com nossas interpretações sobre o que as pessoas estão conversando ou pensando.
Como os vários personagens que se sentam no banco da praça, encontramos em “Um Pedaço de Madeira e Aço” um refúgio, um momento de pausa para respirar e pensar em nossa existência, em nossas dores e alegrias. Chabouté nos proporciona uma obra que, ao representar a rotina, quebra com ela, fazendo-nos questionar o que somos em uma sociedade marcada pela mecanização das relações pessoais e pelo excesso de informação, nos levando de encontro a nossa própria humanidade e nos permitindo voltar a ter experiências com as coisas da vida.
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