
Arte de Marc Chagall
ele chegou cedo no ateliê, tinha brigado com a mulher mas não por isso
– o desenho que ele deixou em suspenso ontem à noite –
era como se os traços implorassem me termine para que eu possa viver.
antônio trabalhava rápido,
geralmente construía suas obras em um dia único, até mesmo os desenhos que viraram quadros e depois lhe renderam prêmios, dinheiro que ele gastou mal e mal comprando uma mesa
de jacarandá
e um bolo
de confeitaria
que ele comeu sozinho no ateliê, os pés no piso frio.
era um lobo solitário, sua esposa reclamava
com razão, era um homem inatingível, se escondia na própria arte antônio, em que mundo você vive? também não fora pai,
ele foi alguém na cozinha enquanto a esposa preparava o café das filhas,
e as levava pra escola,
tudo passava por ele tão depressa
os acontecimentos, natal, ano novo, páscoa, aniversário
um trem que ele jamais alcançaria ainda que corresse em fôlego máximo, por isso
preferia o ateliê afastado de tudo
chegou ali
naquela manhã tão cedo
tirou o casaco, deixou na cadeira e era como se ele já estivesse sentado ali.
lentamente pegou o desenho que ficou pra hoje, um início de vaso que tendia a ser antigo, ele estava inclinado a desenhar algo antigo
apesar da pouca experiência com louças.
Antônio se sentou em sua grande mesa de jacarandá
2 Antônios agora, o da blusa e o de carne e osso
brigou com a esposa, horas antes, mas
não por isso
pegou o lápis, deixou que a mão o guiasse
pelo desenho
igual ele fazia criança quando sua mãe o levava até o rio
pra brincar, o que tem no vaso? o que poderia ter
no vaso
Antônio pensou um pouco,
e se fosse de vidro? por dentro um cemitério
de borboletas, ele nunca tinha visto um corpo de borboleta, pra onde elas vão depois da morte? pro vaso, esse imã,
depois que terminou o formato ele pintou com diversas cores
a pilha de corpos depois da guerra que era existir na cidade grande sendo pequena e voadora, ele foi experimentando
texturas possíveis para asas inúteis, o suor lhe cobria a testa, lá fora um tipo vento que costumava trazer chuva quando uma leve ereção lhe ocorreu.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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