Em São Paulo, na sua caótica realidade, é possível encontrar numa caminhada sutilezas que contrastam com sua paisagem dolorosa. Como a resiliência de alguma muda de planta, que insiste em viver em meio ao concreto mal colocado, moradores de rua que lhe devolvem sorrisos em sua dura existência, milhares de dizeres em cartazes dos seus poetas escondidos, cores nos grafites de seus muros esburacados, música em cada esquina e comidas do mundo inteiro para aquecer alguma alma imigrante.
O mais engraçado é que, de alguma forma, em algum momento, essas delicadezas saltam aos olhos. Como se a metrópole ousasse lhe dizer que existe poesia em qualquer lugar. Dia desses, na bilheteria do Cine Joia, tradicional cinema da região da liberdade, onde antigamente foi cenário de muitos filmes da colônia japonesa ou matinês de Bang Bang, encontrei um coraçã ;o. Esquecido, largado ou deixado por alguém.
Sorte minha que o encontrei, ainda tão vermelhinho, vivo em seu brilho. Aparentemente um coração jovem. Vazio para caber-me inteira. Como a caixinha de jóias que Zezé, meu padrinho, me presenteou quando eu era criança e fez com que eu prestasse atenção em cada preciosidade que ali poderia guardar. Diferente do coração, a caixinha do Zezé est&aa cute; cheia de coisinhas raras que colecionei ao longo da vida: bilhetinhos, dentinhos das meninas, a chave do portão do jardim do meu avô e ainda cabe monte de sutilezas.
Fiquei com receio de pegar, de ser de alguém que precisasse dele mais do que eu; mas a luz do sol refletia no coração fazendo com que ele gritasse a qualquer sinal de desistência da minha parte. Eu então parei bem perto dele, tão simpático, e me convenci de que não estava desistindo de nada. Agradeci por me chamar atenção, por tirar-me da correria por alguns instantes, por brilhar em meio a tradicional calçada paulistana com o mapa da cidade em preto e branco. Eu poderia levá-lo pra casa, mas acho que nosso encontro foi o suficiente. Ele estava bem, acolhido em um parapeito, coberto da chuva e sem o risco de algum desavisado pisar. Ele pertencia àquele caos. Era o ponto de tranquilidade, era a mensagem de amor, era a poesia concreta que muitos poderiam deparar-se. Não seria justo eu trancafiá-lo comigo. Me parecia muito egoísmo.
Fotografei o pequeno coração, para vez ou outra lembrar que existe lugar para me guardar do mundo. Para procurar poesias por aí. Para guardar os dentinhos de crianças em caixinhas e lembrar que um dia elas já acreditaram em fadas, mesmo que devolvido o agrado em frias moedas.
Olhei pela última vez, como se me despedisse e, por incrível que pareça, ele entendeu. Poderia quase dizer que também sorriu. Não com bocas e dentes, mas sei que sorriu. Eu segui, deixando aquela pequena caixinha em forma de coração para alguém guardar sutilezas. Ou para os passantes darem alguns segundos do seu turbilhão de coisas e relembrar em que em algum lugar existe uma chave que abre a porta para um jardim, bilhetes de amores juvenis e padrinhos que ensinam que joias não são pedras preciosas.
★★★★★★
Renata Py é publicitária, foi editora-chefe da PUNKnet e locutora na Antena Zero. Trabalhou com jornalismo cultural em veículos como Showlivre e Kultme. Hoje dedica-se apenas à escrita literária.
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