No dia 3 de junho, Evelyn C. acordará de um pesadelo. Estava numa estranha sala sem paredes, acompanhada de uma única pessoa, de quem não enxergava o rosto, apenas a parte de trás da cabeça, independentemente do ângulo ou direção em que se movia. A pessoa, Evelyn C. sabia, conseguia vê-la, mesmo de costas. Acordará com o coração acelerado e terá dificuldades de pegar no sono de novo. O sonho, em pouco tempo, será esquecido. De pé, perceberá que o frio já terá chegado, trazendo um céu cinza, denso, quase inglês, e optará por um chá preto com biscoitos ao invés do habitual café solúvel. Espremerá uma espinha após o banho e escolherá prender o cabelo para não perder tempo penteando-o. O resto do dia transcorrerá como de costume, significando que vestirá as mesmas calças jeans claras do dia anterior, seus fiéis all-stars vermelhos, uma camiseta qualquer e seu único casaco grosso. Sairá para o trabalho com o uniforme recém passado e dobrado cuidadosamente numa mochila em direção ao ponto de ônibus. O trabalho, neste dia fora de temporada, será particularmente monótono, com apenas um casal fazendo checkout dentro do horário, e duas famílias fazendo check-in, uma delas sendo atendida por Mônica, a recepcionista mais jovem e mais experiente no trabalho do que Evelyn C. O mais próximo que ela tem de uma amizade nessa cidade. Ao fim do expediente, enquanto dobra seu uniforme e o guarda novamente na mochila, recusará o convite de Mônica para um happy hour, sabendo que só a convidou para não parecer que estava chamando apenas Antônio, o barman. Evelyn C. já terá feito planos de comprar uma garrafa de vinho no supermercado da esquina e toma-la inteira assistindo algum filme no computador. Quiçá se masturbar antes de dormir. No ponto de ônibus, reparará na mulher ao seu lado, que se mantém de costas para ela o tempo todo e, quando se vira para olhar o celular ou a poça de água parada e fedorenta na sarjeta, tem o rosto escondido pelos cabelos longos, pretos, alisados. Evelyn C. sentirá um estranho dejà vu, mas não se recordará do sonho que teve pela manhã. Ao finalmente tomar o ônibus para casa, por volta das 18:00, e entregar o dinheiro ao cobrador, verá nele o rosto de Evelyn C.
Não um rosto semelhante, mas o seu próprio rosto naquele cobrador. Confusa, Evelyn C. reconhecerá seu nariz ligeiramente alongado, seu queixo um pouco desigual, até mesmo a pequena pinta detrás da sobrancelha observando-a com certo desinteresse e devolvendo o mesmo silêncio, porém não a mesma expressão assustada. Evelyn C. não se atravessará a catraca com pressa e de cabeça baixa, preferindo acreditar que está cansada, imaginando coisas. Ao sentar em um dos bancos, verá que a senhora ao seu lado também é Evelyn C.
Desta vez, não poderá conter um pequeno grito de susto. Seu rosto copiado perguntará se está tudo bem, e ela responderá balançando a cabeça num tímido sim, temendo que a voz falhe. Desviando o olhar, Evelyn C. se deparará com um ônibus lotado por cópias de si própria. Se verá em pé no corredor com ar de cansada, sentada com um gorro cinzento escondendo a cabeleira ruiva, olhando pensativa para fora da janela, cedendo o lugar a uma Evelyn C. grávida e até mesmo ao volante, conduzindo o veículo.
Tentará dar algum sentido ao que vê, mas será inútil. Estará ali, naquele ônibus, sã e acordada, vendo o rosto de Evelyn C, esse rosto tão familiar, completamente seu, e tão diferente dos outros. O rosto com o qual se preocupa todos os dias e que critica tantas vezes defronte o espelho. E nessas muitas Evelyns C. verá também a espinha que aparecera perto do maxilar naquela manhã, as orelhas assimétricas que geralmente tenta esconder com os cabelos, o pelinho que sempre escapa dos limites escuros da narina. Aquelas pessoas todas não poderiam ser Evelyn C, pensará Evelyn C. Ela é Evelyn C. Mas são inegavelmente idênticas a Evelyn C., pois além do rosto terão o mesmo porte de Evelyn C., os ombros levemente arqueados de Evelyn C., as panturrilhas largas de Evelyn C., o metro e sessenta e dois de Evelyn C. Pensarão os mesmos pensamentos de Evelyn C.?
Desejará arrancar seus sapatos para encontrar o dedo médio maior que o dedão como nos pés de Evelyn C. Olhar os incisivos, que não poderiam ter o mesmo serrilhado dos dentes de Evelyn C. Rasgar suas roupas, ver se possuem a marca avermelhada perto da virilha como apenas Evelyn C. possui. Estará a ponto de atirar-se sobre a Evelyn C. mais próxima quando notará suas roupas. Elas todas estarão vestindo outras roupas, roupas que não são de Evelyn C. Não, Evelyn C. será a única vestindo as roupas de Evelyn C., e nisso se agarrará com todas as forças.
Descerá no próximo ponto após essa revelação e caminhará mais do que o usual até sua casa. Andará acuada, quieta, observando suas cópias malvestidas caminhando na rua, sentadas em restaurantes, tossindo ou assoando o nariz ou bocejando ou comentando com a Evelyn C. que caminha ao seu lado com um cachorro sobre o frio que a pegara de surpresa naquela manhã. Ao virar em sua esquina, seguirá em direção ao seu apartamento um pouco mais apressada, cruzando com mais cinco Evelyns C. no caminho e quase esbarrando numa Evelyn C. pedindo esmolas, cena que a deixará estranhamente emocionada. Preferirá não pensar em suas mãos sujas estendidas, sua voz clamando por um trocado. Vai ignorar a visão, tentando compreender tudo o que vira naqueles poucos minutos e se é, ainda, Evelyn C
Ao chegar em casa, Evelyn C. sentirá uma tontura como se tivesse se levantado muito rápido. Sua vista se escurecerá por alguns instantes, mas não irá perder o equilíbrio. Indo ao banheiro para lavar o rosto, levará o maior susto até então: o rosto no espelho não será o seu.
A princípio a encarará, com olhos assustados, apesar de visivelmente cansados, um homem negro, corpo largo que não cabe inteiro no espelho, cabelo cortado rente e barba por fazer. Ao se aproximar, passará pelo corpo de uma menina de cinco anos na ponta dos pés, uma jovem com maquiagem borrada, até que, ao parar a centímetros do vidro, enxergará o rosto de uma enrugada senhora japonesa. Tocará sua pele e saberá não se tratar apenas de uma visão, pois sentirá, na ponta dos dedos, as reentrâncias das rugas que nunca teve, mas que agora vê. Jogando-se para trás, acabará se vendo com o rosto de um homem de óculos, bigode branco espesso, tão assustado quanto Evelyn C. saberá estar. Ela moverá o rosto para um lado e para o outro, vendo como a face no espelho muda com o menor dos movimentos, compreendendo o incompreensível. Agora com um pouco de curiosidade, inclinará o rosto para cima, vendo-o se transformar num garoto loiro de maxilar expressivo; depois para baixo, numa mulher, talvez modelo, os olhos pesados de maquiagem. Dará um passo para trás e será um rapaz visivelmente bêbado. Para a frente e será uma adolescente com a cara vermelha de espinhas. Brincará um pouco com essas visões, jamais encontrando um rosto duas vezes e, prestando atenção, perceberá que todos eles vestem as roupas de Evelyn C. Altos ou baixos, gordos ou magros, estarão todos com o casaco grosso, a camiseta amassada, a mochila ainda nos ombros e, se inclinando para a frente, nas pontas dos pés, a calça jeans.
— É hoje — dirá Evelyn C. para si e para todas as faces no espelho. — Tô ficando doida.
Pegará o telefone do bolso para chamar ajuda, mas tomará um instante de hesitação antes de discar o número de Mônica. Cinco toques de espera e ela atenderá, falando alto para tentar se escutar sobre a música e as conversas na mesa do bar.
— Alô.
Aqueles sons quebrarão o silêncio até então operante em seu apartamento, fazendo com que Evelyn C. repense a necessidade da ligação. Pensará em esconder o assunto, desistir da ajuda, talvez esteja solitária, apenas, mas o homem barbado que a encara faz com que engula o orgulho.
— Alô? Evelyn?
— Amiga — dirá por fim —, desculpa te atrapalhar, te pedir, mas preciso de ajuda. Pode vir aqui em casa?
— É urgente? Porque não tô bem pra dirigir, agora.
— Acho que tô ficando louca — a voz de Evelyn C. sairá de seus lábios quase como um sussurro, um esgar.
— Alô? Alôu? Tá aí? Não tô te escutando.
— Não tô legal, Mônica. Acho que tô enlouquecendo.
— Como assim?
Ela acha que é piada, pensará Evelyn C.
— Não sei, não sei, eu acho que eu vou… — responderá e, na hora certa, sua voz engasgará, uma lágrima ameaçando se formar.
— Evelyn? Evelyn? Fica calma, vou aí sim, por enquanto fica tranquila. Tem alguém pra você ligar?
— Não, não tem!
— Tá, já vou, respira, calma. Não faz nada que você possa se arrepender depois, tá? Beijo. Gente, era a Evel-.
Não, não vou me suicidar, pensará Evelyn C.
Mônica chegará quase duas horas depois. Nesse meio tempo, Evelyn C. terá tido tempo de lavar o rosto, pingar colírio nos olhos, tomar um banho relaxante, fazer um chá, engolir uma segunda dose da medicação e trocar de roupa, ritual que já serviu para acalmá-la em crises passadas. O espelho do banheiro ficará embaçado, mas os rostos continuarão lá. Quando a campainha tocar, Evelyn C. terá ido, já, ao quarto, se observar no espelho de corpo todo. Vestida ou nua, percebendo que não apenas o rosto mudava a cada ângulo, mas o corpo todo. Parada, de lado, de costas, olhando por cima do ombro, caminhando, pulando, se agachando, correndo, desfilando, Evelyn C. testemunhará sua própria metamorfose em diversos tipos de homens, mulheres, crianças, idosas, de proporções e peles diferentes, com marcas, pelos, manchas, deformidades e machucados diversos, todos atentos ao próprio corpo quanto Evelyn C. aos seus. Quando Mônica chegar, Evelyn C. já saberá como é ser baixa, alta, ter pênis e saco, peitos grandes e caídos, peitos siliconados, pneus na barriga, costelas aparentes, joelhos tortos, um dedo a menos, sardas, sarna, usar óculos, aparelho, tapa-olho, cabelo raspado, longo, não ter. E o mais estranho, saberá disso apenas ao olhar para o espelho, pois, olhando para baixo, para si, voltará a ser Evelyn C.
Mas a campainha tocará no momento em que Evelyn C. estiver encarando um homem barbado, passando a mão pelo queixo, sentindo a grossura dos pelos que jamais teve. Ela colocará as roupas apressadamente e, pelo olho mágico, verá duas Evelyns C. à espera do lado de fora do corredor. Um rosto já quase estranho para ela, apesar de familiar.
Uma estará vestindo minissaia preta e blusa cropped, mostrando a barriga não definida que Evelyn C. não gostava de mostrar. Sua feição estará preocupada. A outra ainda estará com o uniforme de barman do hotel, gravata borboleta e colete vermelho, um pouco confusa com a situação. Talvez tentando compreender se está se metendo numa furada ou num ménage.
— Mônica? — perguntará, antes de abrir.
— Sou eu, Evelyn.
Ela lançará um olhar desconfiado para a Evelyn C. de uniforme.
— Antônio, né?
— Isso. Tudo bom?
Entrarão.
— Me fala o que aconteceu, amiga. Fiquei preocupada — dirá Mônica. Evelyn C. indicará com a cabeça que prefere falar em particular, e a amiga dirá a Antônio: — A gente já vem.
Pelo sorriso, Evelyn C. saberá que a Evelyn C. uniformizada está esperando um ménage.
— Pode fumar? — perguntará.
— Pode, mas abre a janela.
As duas irão para o quarto de Evelyn C., onde, sentada na cama, Evelyn C. repensará a situação. Se era necessária a vinda de Mônica, que a observa com os olhos curiosos de Evelyn C. Perceberá que há uma estranheza em seu rosto, em ver seu rosto. E na palavra ver, entenderá que é a primeira vez que vê seu rosto: não através de uma foto, de um espelho ou de qualquer lente, mas ao vivo, à sua frente, fora do seu corpo. É como ouvir a própria voz numa gravação, pensará Evelyn C., sempre parece mais fina do que se espera. Mas não dirá nada disso para a Evelyn C. que se diz Mônica. Irá olhar mais uma vez para o espelho e se enxergará como um homem obeso com verrugas na cara e uma evidente loucura nos olhos. A Evelyn C. de minissaia e blusa cropped continuará sendo Evelyn C. no reflexo. O homem cairá em lágrimas, e a Evelyn C. de blusa cropped virá abraça-lo, afagar seus cabelos de Evelyn C.
— Calma, calma. Respira.
— Não é nada — dirá Evelyn C., tentando refrear os soluços. —É uma crise, já tá passando.
— Crise do quê?
— Não, já tomei remédio. Eu tenho às vezes, sabe?
Evelyn C. se deixará ser abraçada pelo clone por mais um minuto, depois a mandará embora.
— Já tô bem melhor — dirá, assoando o nariz. — Desculpa te fazer passar por isso. Ainda mais com o boy aí.
As duas rirão.
— Gato, né?
— É… é. Mas relaxa, já tô bem.
— Eu fico aqui com você, mando o Antônio embora.
— Não relaxa, vou ligar pra minha mãe. Acho que ela vai poder vir, me levar no psiquiatra.
— Tem certeza?
A visita durará meia hora, no máximo, e Evelyn C. estará sorrindo quando as duas Evelyns C. saírem pela porta. Depois fumará, em paz, um cigarro e voltará para a frente do espelho. Ficará um belo tempo ali, se olhando, virando o rosto de lá para cá, para cima e para baixo, em velocidades diferentes, parando em alguns ângulos. Inspecionará as gengivas, tocará nos dentes, fará caretas, ora sorrindo, ora brava, puxará as orelhas, inflando as bochechas. Quando de fato fizer uma cara engraçada, ficará rindo, primeiro da cara, depois de sua própria risada no espelho. Quando se cansar de ver toda essa gente no espelho, pegará uma faca na cozinha, uma com lâmina larga, e tentará ver seu reflexo ali também.
Mas isso será no dia 3 de junho. Por enquanto estamos no dia 2, e Evelyn C. dorme. No sonho, está numa estranha sala sem paredes, acompanhada de uma única pessoa, não enxerga seu rosto, apenas a parte de trás da cabeça. Tenta, por todos os ângulos, todas as direções, descobrir o rosto. Aqui, o tempo não corre, está parado. Ela é quem gira e gira ao meu redor, desesperada, tentando ver algo além do meu cabelo alisado, da minha nuca. Em algum momento irá acordar, e o sonho, em pouco tempo, será esquecido.
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