Leia três poemas inéditos de Fernando Abreu

 

Fernando Abreu nasceu em São Luís do Maranhão. Durante cerca de dez anos editou a revista de poesia “Uns & Outros”, como membro do grupo Akademia dos Párias. Tem quatro livros de poesias publicados: “Relatos do escambau” (Exodus, 1998), “O umbigo do mudo” (Clara Editora, 2003), “Aliado Involuntário” (Exodus, 2011) e “Manual de Pintura Rupestre” (7 Letras, 2015). Como letrista, tem parcerias com Zeca Baleiro e Chico César, entre outros. Mantém o blog “Homem Comum”, onde publica basicamente poemas. Os poemas abaixo fazem parte do livro inédito “Contra todo alegado endurecimento do coração” (7Letras), com lançamento em breve.

Leia a seguir três poemas do autor:

 

Capa - Fernando Abreu

 

Meu tempo

sou, como se diz,
um poeta do meu tempo
mas o meu tempo não é o seu tempo
nem o da maioria
nem mesmo o da minoria
meu tempo é o meu tempo
é algo que levei a vida toda
para descobrir
e respeitar
e reverenciar.

meu tempo talvez seja
o tempo do homem velho sentado na porta de casa
imune ao medo que tentam inocular nele
o tempo da caixa de supermercado
e seus acessos de combustão espontânea
o tempo do carteiro
sufocado pela decadência de sua missão.

o tempo dos que fugiram
e agora pensam se agiram certo
e dos que foram mandados embora
e ruminam sua magia há quinhentos anos.
com toda certeza o tempo dos gatos
e de alguns cachorros, não todos.
para eles esses poemas
e todos os que virão
para você também
mas vai ter que merecê-los
como tive que merecer escrevê-los
e isso não é, necessariamente,
uma questão de tempo.

Filosofia arcaica

você sabia que iogues indianos
estiveram na grécia antiga?
a grécia de platão e todos os outros?

no tempo de alexandre,
eles desfilaram totalmente nus,
com sua pele esturricada
entre os cidadãos da ágora
(enquanto os escravos trabalhavam
e esparta treinava para salvar o mundo)

não foram tidos como loucos ou mendigos
mas como visitantes tão ilustres quanto bizarros
homens com quem se podia acender o fogo do diálogo
sem ter o fígado comido por abutres
homens com quem se podia aprender
tornando a filosofia uma coisa mais viva
mais complexa e frágil como a chama
que brotava de seu silêncio
e que ajudou a manter viva a aventura do ocidente
mesmo que tudo tenha caminhado para o desastre.

veja agora, segunda década do séc. XXI
cardumes humanos à deriva no mediterrâneo
chutados de volta, feridos à bala, afogados e devorados
por peixes temerosos de perder seus empregos.
e outros tantos refugiados em seus próprios países
democraticamente chutados, mordidos por cachorros
feridos à bala e devorados por tubarões
disfarçados de policiais temerosos de perder seus empregos
enquanto o planeta arqueja como um elefante ferido.

onde estão os gimnosofistas?
onde podemos buscar de novo a nudez do nosso pensamento?
quando responderemos aos enigmas do rei
com frases curtas e desconcertantes?
whitman sabia disso, huxley também
dom manoel na selva peruana sabe
maría sabina, mais que todos,
eu mesmo ainda sei
você também sabe
só que andamos muito ocupados e esquecidos.

poderiam abrir a porta para nós, meninos?

As crianças de Jah

as crianças de jah brincam na grama
do grande parque do mundo
parece um pouco maltratado
depois de tantas bombas
mas elas correm entre os escombros
e ainda é o grande parque do mundo
o velho gramado ferlinghettiano
(não ligue para essas flores estranhas
reação ao adubo das trincheiras)

as crianças de jah são energia pura
afugentando à bala
amiguinhos que chegam de bote
brincando de salvar
amiguinhos ainda menores
que eles brincam chamando de filhos
(game de ação instrutiva
realidade aumentada além do suportável)

as crianças de jah vão à escola
para aprender a somar e subtrair
não se tornam muito bons em dividir
o sistema educacional não é perfeito
mas tende a melhorar dialogando
com as crianças de igual para igual
o importante é o aspecto lúdico
as crianças de jah escrevem poemas
e inventam uma outra vida
e uma outra dentro da outra
apontam seus dedos lustrosos
uns para os outros numa guerra santa
pelo monopólio do indizível
alguns se explodem junto com a linguagem

as crianças de jah
pouco resta a dizer sobre elas
que já não tenha sido dito ou pensado
imaginado ou sugerido
desde que as crianças acordaram
e descobriram que depois de tudo
não eram nada mais que crianças
só lhes faltava a inocência
e o tempo
e jah

Fernando Abreu - LOID

Fernando Abreu

 

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